O som de unhas raspando em uma superfície.
O rangido das unhas de Dona Eunice na tábua de corte não era um som qualquer. Era a banda sonora de uma vida inteira em meio ao aroma pungente de cebola e alho refogados. Naquele sábado ensolarado, o som ganhava uma urgência diferente, um ritmo impaciente que parecia ecoar a ansiedade contida no pequeno apartamento no Rio Comprido. O almoço de domingo da família estava a caminho, e com ele, a visita de Seu Osvaldo, o filho pródigo que raramente aparecia.
Ao lado dela, na bancada amarelada de mármore, Clara, a neta, de dezessete anos, martelava as teclas do celular com uma velocidade furiosa, os fones de ouvido bloqueando o mundo alheio. O som das unhas de Dona Eunice, um arrastar constante e preciso sobre a madeira marcada pelo tempo, tentava se impor. Era um som de trabalho, de cuidado, de tradição. O som das unhas de Dona Eunice era a cola que mantinha as refeições familiares unidas, o tempero secreto que não se comprava em sachê.
“Clara, querida, você não quer ajudar a picar a couve?”, a voz de Dona Eunice, embargada pela fumaça e pela idade, quebrou o silêncio do apartamento. A menina deu um sobressalto, o rosto jovem contraído por um lampejo de irritação antes de suavizar num sorriso forçado.
“Já vou, vó. Só mais um pouquinho.”
Dona Eunice suspirou, o som quase inaudível sob o raspar incessante. O dilema de Clara era tão familiar quanto o cheiro de café fresco. A menina vivia num mundo de pixels e likes, um mundo onde o toque virtual parecia mais real que a textura áspera da terra nas mãos de quem cultivava o alimento. E o som das unhas de Dona Eunice, aquele som tão rudimentar, parecia pertencer a um tempo que Clara mal conseguia conceber.
De repente, o raspar cessou. Dona Eunice largou a faca enferrujada e sentou-se pesadamente em um dos bancos de madeira. O silêncio que se seguiu, após tantos anos de ruído constante, era ensurdecedor. Clara ergueu os olhos do celular. Dona Eunice olhava para as próprias mãos, unhas aparadas, mas a pele marcada e enrugada, um mapa de histórias não contadas. Havia um tremor leve nos dedos.
“Minhas mãos… não estão mais como antes, Clara”, disse, a voz baixa, quase um sussurro. “O som… não sai mais igual.”
Clara tirou os fones. Pela primeira vez naquele dia, ela viu realmente a avó. Viu a fragilidade que se escondia sob a força habitual, a dor que as unhas não conseguiam mais mascarar. E o som que ela sempre ignorou, aquele raspar incansável, agora ressoava em sua mente com uma clareza dolorosa. Era o som de uma dedicação, de uma persistência, de um amor que se manifestava no cotidiano mais banal.
Dona Eunice levantou-se devagar, caminhando para a janela que dava para o emaranhado de telhados do bairro. O sol da tarde iluminava seu rosto, acentuando as rugas que contavam a sua história. Clara, ainda sentada, sentiu um impulso incontrolável. Deixou o celular de lado e aproximou-se da tábua de corte. Pegou a faca e, hesitante, raspou as unhas na superfície da madeira.
O som foi diferente. Mais agudo, mais inseguro. Não tinha a ressonância da vida que Dona Eunice imprimia. Mas era um começo. E no silêncio que se instalou entre elas, Dona Eunice sorriu, um sorriso triste e esperançoso, ao ouvir o eco incerto do seu próprio som nas mãos da neta. O almoço de domingo ainda estava por vir, mas algo naquele apartamento já havia sido alterado para sempre.
Por: Beatriz Almeida Vianna

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