O Silêncio dos Pés Descalços
O ar da tarde no Largo da Ordem em Curitiba cheirava a terra molhada e ao doce amargo do jasmim que brotava teimoso entre as pedras antigas. Anaí se encolhia sob o balcão da banca de livros usados, o algodão fino de sua blusa arrepiado pelo vento frio que anunciava a primavera tardia. Ali, escondida entre lombadas gastas e o burburinho dos turistas e dos músicos de rua, ela buscava um refúgio. Refúgio para o corpo, sim, mas principalmente para a alma que se contorcia em silêncio.
Seus pés, descalços e fortes, tocavam o chão irregular com a familiaridade de quem ali cresceu. Cada pedra, cada rachadura, era parte de sua paisagem, palco não oficial de suas performances mais íntimas. O corpo de Anaí era um livro aberto, as linhas de seus músculos, a curva de suas costas, a tensão em seus ombros, tudo narrava histórias que as palavras falhavam em contar. Havia a alegria saltitante de uma menina na chuva, a melancolia persistente de quem sentiu a perda cedo demais, a raiva contida de quem lutava por cada centímetro de espaço no mundo.
A habilidade dela não era fruto de conservatórios caros, mas de anos observando a vida se desenrolar sob o sol e a chuva do Paraná. As saias rodopiantes das moças em festas juninas, a imponência silenciosa das araucárias, o passo firme das mães carregando cestas no mercado municipal. Tudo se traduzia em movimento, em um balé orgânico que brotava dela sem esforço.
Mas o Festival de Artes do Centro Histórico estava chegando, e a diretora do evento, Dona Lúcia, uma senhora de ternos impecáveis e olhar severo, nunca a vira como uma artista. Vira-a como “aquela menina que dança solta”, um entretenimento de rua, um borrão de cor vibrante que podia assustar os patrocinadores. Anaí, com seu cabelo preso em um coque frouxo que sempre desfazia, suas mãos calejadas de carregar caixas na feira de artesanato onde ajudava a mãe, não se encaixava nos moldes. “Talento sem polimento, querida”, Dona Lúcia dissera com um suspiro exasperado, enquanto Anaí tentava, com a voz trêmula, explicar que sua dança *era* o polimento, o fruto de uma vida inteira.
A recusa veio de forma fria, profissional. Uma carta timbrada, explicando as “rigorosas exigências artísticas” e a “necessidade de um espetáculo com maior apelo comercial”. Apelo comercial. A frase ecoava no vazio do peito de Anaí como um grito mudo. Ela sabia que as outras candidatas, com seus trajes de seda e passos calculados, tinham o que Dona Lúcia chamava de “beleza de vitrine”. Mas Anaí tinha a beleza da verdade, a força de quem sobrevive, de quem se expressa porque não pode ser de outra forma.
Naquela tarde, o Largo fervilhava de gente, a promessa de apresentações iminentes pairando no ar como a névoa úmida. Um grupo de jazz tocava, o saxofone chorando e vibrando. As pessoas paravam, aplaudiam, compravam CD’s. Anaí observava, apertando os dedos nas costelas do livro que servia de esconderijo. Sentia a música percorrer suas veias, a necessidade de responder, de dar voz ao que a injustiça lhe roubava.
Ela se levantou, cautelosamente, e deu um passo para fora da sombra. O chão de pedra era frio sob seus pés. Começou devagar, um alongamento sutil dos ombros, uma volta lenta do pescoço. O som do saxofone parecia chamá-la, e ela respondeu. Seus braços se abriram como asas, o corpo se curvou em uma saudação silenciosa ao céu cinzento. Não havia plateia oficial, apenas os transeuntes que, aos poucos, diminuíam o passo.
Seu corpo falava. A frustração se transformava em linhas aguçadas, a mágoa em quedas delicadas e recuperadas com força. Cada giro era um questionamento, cada salto um ato de resistência. Os olhos de alguns se fixavam, curiosos. Outros desviavam, talvez constrangidos, talvez indiferentes. Mas alguns, poucos, pareciam entender. O padeiro que parou com uma fornada de pão quente em suas mãos, a senhora com um xale colorido sobre os ombros, os jovens artistas com seus cadernos de desenho.
Anaí não dançava para eles. Dançava para si mesma, para o Largo, para a memória dos momentos em que a dança era liberdade pura. Havia uma dor palpável em cada movimento, mas também uma resiliência que florescia como o jasmim nas fendas da calçada. Seus pés descalços, marcando o ritmo em sua pele, eram a única forma de protesto que lhe restava. A música terminava, o último acorde se dissolvendo no ar. Anaí permaneceu ali, o corpo tenso, o olhar fixo no horizonte. O silêncio que se seguiu era pesado, preenchido apenas pelo som da cidade. Ela respirou fundo, o cheiro da terra molhada parecendo consolá-la. Em seus pés, o frio do chão era um lembrete, um chamado para continuar. O festival aconteceria, com ou sem ela. Mas a dança, essa, era sua para sempre, um segredo bem guardado, um poder que ninguém podia lhe tirar. Ou podia? A pergunta pairava, tão real quanto o ar que ela agora inspirava.
Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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