O Silêncio das Coisas
O cheiro acre da maresia e do lixo orgânico misturava-se àquele outro, mais profundo e indefinível, que emanava da terra úmida e da vida que se esvai. Dona Ivone, com seu passo arrastado e o olhar que já vira mais que os olhos de muita gente, foi a primeira a notar a maré mais alta de todos os tempos trazendo consigo um corpo. Não era um corpo qualquer, daqueles que o mar devolve em solidão e desamparo. Este era diferente, envolto em um cobertor estampado de pinguins, um tanto surrado, que parecia ter saído de alguma casa de praia esquecida pelo tempo.
Ao redor do corpo, a areia revolta denunciava a luta ou o desespero. E ali, espalhados como oferendas profanas, estavam os objetos. Uma coleção de colheres de chá, cada uma com um brasão diferente – umas douradas, outras prateadas, desgastadas pelo uso. Um pequeno pássaro de origami, feito de papel de jornal, com as asas abertas como se prestes a alçar voo. E, o mais perturbador, um álbum de fotografias antigo, mas impecavelmente conservado, repleto de imagens de prédios governamentais de diversas cidades do Brasil, mas com um detalhe peculiar: todos os edifícios tinham um pequeno ponto vermelho desenhado com lápis na fachada.
A polícia chegou, arrastada pela lentidão costumeira de um sábado chuvoso em São Pedro da Aldeia. O sargento Valmir, homem grisalho de fala mansa e mãos calejadas de tanto enxugar o suor da testa, franziu a testa. “Que coisa, hein, Ivone?”, disse ele, mais para si mesmo do que para a vizinha. A identidade da mulher era um mistério. Nenhum documento. Apenas a vida contada em pedaços anacrônicos e enigmáticos.
Os objetos, a mídia abraçou com voracidade. A repórter Estela, da Rede Litoral, com seu olhar ávido por manchetes, viu ali mais que um corpo, viu uma história. Transformou as colheres em símbolos de colecionismo obsessivo, o pássaro de origami em manifesto de liberdade sufocada, e as fotos com pontos vermelhos… ah, essas foram o prato principal. “Atentado? Espionagem? A mulher com os prédios marcados era uma agente secreta?”, trocavam os locutores com vozes embargadas pela excitação do mistério. O mistério alimentava a audiência, e a audiência pagava os salários.
No pequeno apartamento alugado que pertencia à falecida, a família do proprietário, os Silva, tentava juntar as peças. A dona de casa, Clara, sentia um aperto no peito. Havia algo naquela mulher, que se chamava, segundo a vizinha que a vira poucas vezes, ‘Aurora’, que a tocava. Aurora era silenciosa, parecia carregar o peso do mundo nas costas finas. Clara encontrou, escondido numa gaveta, um caderno.
Não eram anotações de viagens ou diários pessoais. Eram listas. Listas de datas, horários, nomes de ruas e, vez ou outra, uma única palavra: “Vigiada”. Ou “Esperando”. Clara lia e sentia um arrepio. Seria tudo aquilo parte de uma trama maior? Ela pensou nos pontos vermelhos nas fotos. Pareciam… alvos.
O pássaro de origami ganhava contornos de símbolo. Um grupo de ativistas ambientais, que há muito lutava contra a construção de uma nova refinaria na região, declarou que Aurora era uma de suas integrantes, silenciada por denunciar irregularidades. As colheres de chá viraram metáfora para a sutileza dos crimes corporativos, o roubo de recursos em pequenas doses.
O sargento Valmir, no entanto, via apenas a tragédia humana. No velório improvisado, onde apenas Clara e alguns curiosos compareceram, ele notou a fragilidade de Aurora. Na sua lapide improvisada, com um nome que talvez não fosse o seu, as palavras que Valmir pensou não foram as do senso comum. Ele pensou nas colheres, na sua utilidade banal e no valor que se dá a objetos sem valor aparente. Pensou no pássaro, na esperança frágil de uma criatura de papel. E nas fotos, imaginou a solidão de quem vê o mundo através de um ponto de mira.
O corpo de Aurora foi para o IML. Os objetos foram guardados como provas. As teorias conspiratórias continuaram a voar nas asas do vento da internet e das televisões. Ninguém sabia quem era Aurora, nem por que acumulava colheres de chá com brasões, nem por que desenhava pontos vermelhos em prédios governamentais. Mas todos tinham uma opinião, um palpite, uma desconfiança.
Clara, sentada na varanda, via a lua cheia pintar o mar de prata. O caderno de Aurora estava em suas mãos. Ela folheou uma página com apenas uma frase escrita em letras miúdas: “Às vezes, o silêncio das coisas fala mais alto que qualquer grito.” O mar continuava a bater na areia, indiferente às teorias, às paixões e às verdades que, talvez, estivessem escondidas naquele silêncio. O mistério de Aurora não seria desvendado pelos manchetes, mas talvez, apenas talvez, pela lenta e paciente escuta da alma das coisas que ela deixou para trás. Ou talvez não. Talvez o silêncio fosse o seu último e mais potente grito.
Por: João Pedro Silveira

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