O segredo de família que leva a um assassinato brutal.

O segredo de família que leva a um assassinato brutal.

A Sombra no Mosaico

O cheiro de café coado e a poeira fina que dançava nos raios de sol que filtravam pelas janelas antigas da casa em Paraty eram o meu refúgio. Ali, entre os azulejos desgastados do piso e as fotografias amareladas emolduradas nas paredes, eu, Elara Vance, Arquivista do Crepúsculo, encontrava as narrativas ocultas nas vidas comuns. E a história da família Leme, que agora desenterrava um segredo tão sombrio quanto a noite sem lua, era uma das mais dolorosas que já me haviam sido confiadas.

Dona Cecília, com seus cabelos prateados presos em um coque frouxo e os olhos azuis que ainda guardavam um brilho astuto apesar dos anos, me chamara com urgência. Sua voz, que antes carregava a melodia suave do sotaque carioca adaptado ao ritmo lento da cidade histórica, agora tremia com uma angústia contida. O motivo: o desaparecimento de seu filho mais novo, Rafael.

Rafael, o artista desajeitado, o sonhador que preferia a tinta a óleo aos números, sempre fora a ovelha desgarrada. Enquanto o irmão mais velho, Thiago, construía uma carreira sólida como advogado em São Paulo, Rafael vagava entre ateliês precários e exposições independentes, alimentando a alma com a beleza efêmera de suas telas. Dona Cecília o amava com uma mistura de desespero e orgulho, um amor de mãe que via além das convenções sociais.

Os primeiros dias foram de angústia silenciosa. A polícia, com sua burocracia fria, listava Rafael como mais um caso de desaparecimento voluntário. Mas Dona Cecília sabia, em seu âmago, que algo terrível havia acontecido. E ela estava certa.

Thiago chegou de São Paulo, a pose impecável e o olhar preocupado disfarçando uma impaciência subjacente. Ele e Rafael sempre tiveram uma relação tensa, marcada por disputas veladas de atenção e, talvez, de ressentimento. Thiago via o irmão como um fardo, um eterno dependente que manchava o nome da família com sua boemia.

A descoberta aconteceu numa terça-feira chuvosa. No porão empoeirado da casa de Dona Cecília, onde Rafael costumava guardar seus materiais de arte, algo incomum chamou a atenção de Thiago. Um dos antigos baús de madeira, raramente aberto, estava parcialmente deslocado. Sob ele, o chão de terra batida apresentava sinais recentes de escavação.

O que encontraram, então, fez o ar se tornar espesso de horror.

Não era um corpo. Era um pedaço dele. Uma perna, envolta em panos sujos, enterrada superficialmente. A brutalidade do ato, a violência implícita na mutilação, deixaram todos sem fôlego. O cheiro de terra molhada misturou-se a um odor metálico e nauseabundo que ecoava pela casa.

O choque inicial deu lugar a uma investigação febril. A polícia, agora com um crime em mãos, intensificou as buscas. As perguntas recaíam sobre todos. Quem teria tanto ódio, tanta crueldade?

Thiago, com sua frieza calculada, parecia ser o mais abalado, mas sua angústia tinha um quê de teatro. Dona Cecília, por outro lado, definhava em sua dor, mas em seus olhos cansados, um lampejo de reconhecimento começou a surgir, um fantasma do passado que a assombrava.

A casa de Dona Cecília, outrora um refúgio de memórias doces, tornou-se um palco de desconfianças. Cada sombra, cada rangido das tábuas antigas, parecia sussurrar segredos. A atmosfera era sufocante, carregada de tensões não ditas.

Thiago começou a agir de forma errática. Mencionou, de passagem, uma antiga dívida de jogo de Rafael, um problema que, segundo ele, o irmão vinha tentando esconder. Mas algo em sua narrativa não batia. A forma como ele desviava o olhar, o nervosismo em seus gestos, levantavam mais dúvidas do que certezas.

Dona Cecília, em um acesso de lucidez torturada, me contou. Contou sobre a juventude de seu falecido marido, um homem que carregava seus próprios demônios, segredos obscuros que ele jurara ter deixado para trás. Contou sobre uma gravidez inesperada, um filho que nunca fora reconhecido oficialmente, um segredo guardado a sete chaves para proteger a reputação da família e a própria sanidade de sua esposa na época.

Esse filho, esse irmão secreto de Rafael e Thiago, havia desaparecido anos atrás, após uma briga feia com o pai. Dona Cecília nunca soube o que aconteceu com ele, apenas que seu marido, consumido pela culpa, enterrou a história junto com a vergonha.

O que Dona Cecília não sabia era que Rafael, em sua busca incessante por identidade e por um lugar ao sol, havia desenterrado pistas. Pistas sobre esse irmão que ele sequer sabia que existia. Pistas que, talvez, o levaram a um encontro fatídico.

A verdade, quando finalmente começou a emergir, era mais cruel do que qualquer ficção. Thiago não era apenas um irmão invejoso. Ele era um homem preso por dívidas que poderiam destruir sua carreira e sua vida. Dívidas que Rafael, com sua ingenuidade artística, não conseguia compreender a dimensão.

Naquela noite chuvosa, em meio a uma discussão acalorada sobre dinheiro, sobre o futuro, sobre a vida desperdiçada de Rafael, algo se rompeu. Thiago, em um acesso de fúria e desespero, havia tirado a vida de seu irmão. O ato brutal, a tentativa de ocultar o corpo no porão, a intenção de fazer parecer um desaparecimento.

Mas o segredo, como um monstro antigo, não podia ser totalmente enterrado. A perna encontrada era apenas o começo de um pesadelo. A brutalidade do assassinato, a forma como o corpo fora desmembrado, indicavam uma tentativa desesperada de desfigurar a identidade, de apagar completamente a existência de Rafael.

Thiago foi preso. Seu silêncio na delegacia era um eco do silêncio que ele impôs ao irmão. Dona Cecília, em seu luto, carregava o peso de um amor que se transformara em tragédia, de um filho que matou o outro.

A casa em Paraty, agora palco de uma cena de crime, parecia exalar a dor. Os azulejos refletiam a luz pálida do sol, mas não conseguiam clarear a escuridão que se instalara ali. O cheiro de café se misturava ao cheiro de terra molhada e, de alguma forma, a um aroma sutil de morte e arrependimento.

O caso Rafael Leme foi encerrado nos registros da polícia, mas as perguntas sobre a verdadeira extensão da crueldade, sobre os motivos mais profundos da explosão de violência, pairavam no ar como a poeira nos raios de sol. A história da família Leme, antes um mosaico de memórias, agora tinha uma lacuna sombria, uma sombra que o crepúsculo, com sua sabedoria paciente, parecia guardar para sempre. E eu, Elara Vance, Arquivista do Crepúsculo, me perguntava quantas outras histórias como essa se escondiam por trás das fachadas das casas brasileiras, em meio ao burburinho do cotidiano, esperando apenas a hora certa para serem reveladas. E a que custo.


Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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