O Sal que Resta
O cheiro era o primeiro a chegar, antes mesmo do sol nascer por cima dos telhados tortos e coloridos da Vila do Fim. Um aroma de refogado persistente, de feijão cozinhando devagar, de algo adocicado e cítrico que Dona Lúcia sempre guardava para o final. Era o chamado silencioso, a promessa de que, apesar da fome que rastejava pelas entranhas daquele pedaço de terra esquecido, haveria algo quente e reconfortante na mesa da comunidade.
Dona Lúcia, com as mãos grossas e o avental manchado de décadas de trabalho, batia o feijão na panela de barro com a força branda de quem sabe o peso de cada grão. Os olhos, enrugados nas pontas, mas ainda vivos e observadores, percorriam o pequeno cômodo que servia de cozinha e despensa. Poucos eram os mantimentos que restavam. O arroz, contado em xícaras. As batatas, firmes e terrestres, um tesouro a ser multiplicado. O saco de farinha, cada vez mais leve. A escassez não era uma notícia de jornal, era o sussurro constante no vento que varria a favela, o olhar apreensivo dos vizinhos na feira, a conta no açougue que não fechava mais.
O mercado, esse monstro de paredes azulejadas e ar condicionado gelado, parecia cada vez mais distante e cruel. Os preços, inflados como balões de festa, subiam sem dó, devorando o pouco que as famílias conseguiam juntar. Dona Lúcia via os olhos brilhantes dos donos dos boxes, a ganância disfarçada de estratégia de negócios, enquanto ela negociava por um punhado de cebola, por tomates menos maduros, por qualquer coisa que pudesse esticar seu orçamento.
“É o que tem pra hoje, Dona Lúcia”, dizia o Seu Manuel, com um sorriso forçado, apontando para os legumes que pareciam já ter visto dias melhores. Ela concordava, o nó na garganta apertando, sabendo que em casa, com aqueles ingredientes humildes, faria um banquete.
Seu banquete não era feito de ostentação. Era feito de sabedoria ancestral, de tempo dedicado, de amor em cada corte, em cada tempero. Era o arroz que ganhava volume com um pouco mais de água e o cozimento lento. Era o feijão temperado com alho e sal, e um fio de óleo que ela economizava como se fosse ouro. Era a couve, refogada até ficar macia e brilhante, o toque verde que acalmava os olhos famintos. E às vezes, um pedaço de linguiça, comprado a peso, que ela dividia em finas rodelas para dar sabor a todos.
As crianças chegavam primeiro, os rostos sujos de poeira e de esperança. Sentavam-se em banquinhos improvisados, os olhos fixos na panela fumegante. Os adultos vinham depois, a cansada dignidade estampada no rosto. Não havia pratos finos, apenas tigelas de plástico coloridas e talheres que já haviam servido a muitas mãos.
“Dona Lúcia, a senhora é um anjo!”, dizia Dona Clara, segurando a tigela com ambas as mãos, o vapor aquecendo seu rosto pálido.
“Anjo nada, Dona Clara. É o que a gente faz pra sobreviver. E pra não deixar ninguém morrer de fome”, ela respondia, com um aceno de cabeça que parecia carregar o peso do mundo.
Mas a cada dia, o desafio aumentava. A lista de preços no mercado parecia um decreto de desespero. Uma manhã, Seu Josué, o dono de um dos maiores mercados da região, apareceu na Vila do Fim. Era um homem corpulento, com um terno impecável que contrastava com a poeira e a simplicidade do lugar. Caminhava com altivez, acompanhado por alguns capangas.
“Ouvimos dizer que há uma boa cozinheira por aqui”, disse ele, a voz grave e autoritária. Seus olhos, pequenos e frios, percorreram a fila que se formava na porta da casa de Dona Lúcia. “Gostaria de fazer uma proposta. Contratá-la para cozinhar em meu restaurante. Ofereço um bom salário, condições melhores do que estas.”
Um burburinho tomou conta da multidão. A possibilidade de mais dinheiro, de uma vida menos dura. Mas Dona Lúcia sentiu um arrepio. Ela sabia o que ele queria. Não era o seu talento, mas a sua capacidade de fidelizar. De atrair as pessoas que, como ela, buscavam um refúgio na comida.
“Agradeço a oferta, Seu Josué”, respondeu ela, com a voz firme, mas sem arrogância. “Mas meu lugar é aqui. Eu cozinho para a minha gente.”
Ele riu, um som desagradável. “Bobagem. O mundo é feito de negócios. Você acha que vai alimentar todos para sempre com o que tem? Logo, não haverá mais nada. O mercado tem o que você precisa. E tem o que a sua gente precisa. Por um preço justo… para mim.”
Os dias que se seguiram foram difíceis. Os preços dos poucos ingredientes que Dona Lúcia ainda conseguia comprar subiram ainda mais. Parecia que o mercado estava apertando o cerco. Ela viu a preocupação nos olhos de seus vizinhos, a fome tornando-se mais audível.
Uma noite, sentada à mesa com suas tigelas vazias, Dona Lúcia pegou um pequeno pote de sal. Era o último, guardado com cuidado. Olhou para ele, o branco granulado reluzindo à luz fraca da lamparina. Lembrou-se de cada refeição que havia feito, de cada sorriso que havia arrancado, de cada momento em que a comida havia sido mais do que sustento, era um ato de resistência.
No dia seguinte, o cheiro que subiu da Vila do Fim não era de feijão, nem de refogado. Era diferente. Era o aroma inconfundível de pão caseiro, recém-saído do forno improvisado. E um cheiro adocicado e cítrico que, misturado ao do pão, trazia uma leveza inesperada. Não havia grandes quantidades, apenas porções suficientes para cada um. Pequenos pães dourados, quentes ao toque, com um toque de mel e raspas de laranja. E ao lado de cada pão, um pequeno embrulho de papel, contendo uma pitada de sal. O sal que restava. O sal que, Dona Lúcia sabia, podia dar sabor à vida, mesmo quando tudo parecia amargo. Ela havia contado o sal, e descoberto que era o suficiente para temperar a esperança. O mercado podia ter o grão, mas não tinha o gesto.
Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

Deixe um comentário