O sabor metálico de sangue na água de um poço.
O Sabor que Molha a Terra
O sol da tarde castigava a pequena chácara, fazendo o ar vibrar sobre a terra rachada. Dona Irene, com as mãos enrugadas de quem cultivava a vida em cada grão, parou por um instante para enxugar o suor da testa com o dorso da mão. O cheiro de terra seca e de feno recém-cortado pairava no ar, um perfume familiar e reconfortante. Mas hoje, algo mais sutil, um indício estranho, roçava as narinas de Irene.
Ela caminhou até o poço, a roda d’água de madeira rangendo um lamento familiar sob o peso da corda. Tinha de buscar água para o café de seu neto, o pequeno Léo, que dormia uma soneca agitada no quarto dos fundos. O balde desceu com um baque surdo, a água subindo em um murmúrio sedento.
Ao puxar o balde de volta, a luz do sol que filtrava por entre as folhas de uma mangueira antiga incidiu sobre a superfície da água. E então, Irene viu. Um tom avermelhado, difuso, como se uma flor vibrante tivesse sido esmagada nas profundezas. Um arrepio percorreu sua espinha.
“É a ferrugem”, murmurou para si mesma, uma tentativa vã de aplacar a inquietação que começava a borbulhar no peito. A ferrugem sempre deixava um gosto amargo na boca, uma sensação áspera que se agarrava à língua. Mas aquilo… aquilo era diferente.
Com a mão tremendo levemente, ela ergueu o balde e levou-o até a boca. O primeiro gole.
O gosto. Não era o amargo da ferrugem. Era mais intenso, mais vivo. Um sabor metálico, inconfundível, que inundou sua boca com a força de um golpe. Sangue. Era o sabor de sangue.
Irene cuspiu a água violentamente, sentindo o estômago revirar. O que podia ser? O poço era fundo, a água sempre clara, mesmo nos tempos mais secos. Pensou em algum animal que pudesse ter caído lá, mas a quantidade de água com aquele tom sugeria algo mais. Algo que emanava das próprias entranhas da terra.
O coração de Dona Irene disparou. Léo. O pequeno Léo, que dependia daquela água para tudo. Pensou em seu marido, Seu Joaquim, que tantos anos atrás ajudara a cavar aquele poço, garantindo a vida para a família. O que ele diria se visse a água manchada assim?
Ela correu para o quarto de Léo. O menino suava, o corpo pequeno agitado em sonhos. O sorriso de Irene, sempre tão presente, sumiu. Pela primeira vez em muito tempo, o medo a apertou com força.
Desesperada, ela ligou para o filho, Carlos, que morava na cidade vizinha. Sua voz, embargada, tentava explicar o inexplicável. Carlos, sempre prático e cético, prometeu vir no dia seguinte.
Enquanto esperava, Dona Irene sentou-se à beira do poço. O sol se punha, tingindo o céu de laranja e roxo. O cheiro de terra agora parecia carregar consigo um sussurro de algo antigo, algo que ela não compreendia.
Ela olhou para o balde, para a água que ainda mantinha o tom avermelhado. Não era apenas a ferrugem da terra. Era algo que parecia carregar a história do lugar, a dor, a perda. Algo que vinha de muito fundo.
Naquela noite, Dona Irene não dormiu. Ouviu os gemidos de Léo, o uivo distante de um cachorro, o farfalhar do vento nas folhas. E cada som parecia amplificar o eco daquele sabor. O sabor metálico de sangue na água de um poço. Era o gosto da terra que se revelava, ou o gosto de algo que estava para se perder? Ela não sabia. Sabia apenas que o familiar havia se tornado estranho, e que a sede que sentia agora não era apenas de água. Era de respostas.
Por: Ricardo Soares Guedes

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