O rio que engole: em itapetininga, o rio que corta a cidade começa a apresentar um comportamento anômalo, atraindo e afogando pessoas de forma misteriosa e violenta.
O Rio que Engole
O Tietê, antes companheiro de brincadeiras e refúgio de pescadores em Itapetininga, agora era um sussurro de perigo. As águas, que antes espelhavam o azul sereno do céu, haviam se tornado turvas, densas, carregando um odor metálico que picava a garganta. Não era o fedor costumeiro da poluição, mas algo mais primitivo, um cheiro de terra revolvida e de algo… vivo.
Dona Elza, com seus cabelos brancos presos num coque frouxo e um avental manchado de farinha, sentia um arrepio a cada vez que olhava para a correnteza. O neto, Matheus, dez anos, com a pele bronzeada e joelhos sempre ralados, antes adorava ir com ela ao rio buscar água para as flores. Agora, seus olhos curiosos miravam a margem com uma mistura de fascinação e pavor.
Os boatos começaram baixinho, como o farfalhar das folhas ao vento. Primeiro, o Seu Joaquim, que sempre voltava tarde das roças, sumiu. A canoa dele apareceu virada, a rede de pesca emaranhada em galhos submersos. Depois, a Dona Maria do açougue, que gostava de lavar as mãos no rio depois de cortar a carne. Ninguém viu, ninguém souviu. Apenas o silêncio pesado da margem.
O prefeito, um homem barrigudo e preocupado, mandou fechar as estradas que davam acesso ao rio. Barricadas improvisadas com arame farpado e placas de “PERIGO”. Mas o rio parecia zombar deles. Na manhã seguinte, um jovem, bêbado de cachaça e coragem barata, pulou a cerca e se afogou. O corpo, diziam, foi puxado para o fundo com uma força brutal, como se garras invisíveis o agarriassem.
Matheus, contudo, não se conformava com o medo. Ele sentia uma atração estranha pelo rio. À noite, antes de dormir, olhava pela janela do quarto e via o brilho pálido da lua sobre a água escura. O rio parecia chamá-lo, um murmúrio baixo que ele quase conseguia decifrar.
Um dia, a tragédia bateu à porta de Dona Elza. Matheus, com a ânsia de provar que o rio não era um monstro, mas apenas um rio com águas agitadas, foi tentar pescar uma corimba que vira nadando perto da margem. Dona Elza o seguiu com o coração apertado.
“Filho, volte!”, gritou ela, a voz embargada pelo pânico.
Matheus riu, um riso infantil e desafiador. Ele esticou a mão para a rede. De repente, a correnteza se intensificou, formando um redemoinho violento em volta do menino. A água, antes a poucos centímetros dos seus pés, subiu, o engoliu. Dona Elza gritou, se jogou na beira, as mãos tentando alcançar o inatingível. Mas o rio a repeliu, as ondas lhe lambendo os pés com uma agressividade inesperada.
Ela observou, impotente, o ponto onde seu neto desaparecera. A água voltou ao seu curso normal, como se nada tivesse acontecido. Apenas a rede de pesca, agora vazia, boiava a alguns metros, dançando ao ritmo suave da correnteza.
Os dias se tornaram semanas. A cidade vivia em sobressalto. O rio, outrora fonte de vida, agora era um abismo de incertezas. Cientistas vieram, coletaram amostras, fizeram análises. Nada. Apenas a água suja, a corrente forte, a explicação que faltava.
Dona Elza passava horas sentada na margem, o olhar fixo na água, como se esperasse um sinal. Ela já não sentia medo. Apenas uma dor profunda, um vazio que o rio parecia ter levado consigo. Em noites claras, ela jurava ouvir um sussurro vindo da água, uma melodia triste e familiar. Era a voz de Matheus? Ou era o rio, finalmente, revelando seu segredo, um segredo antigo, ancestral, que ele guardava nas profundezas turvas de Itapetininga? O rio que engole, que seduz e que leva, para onde, ninguém sabia dizer. E talvez, o mais terrível, era a possibilidade de que, em algum lugar lá no fundo, o rio estivesse apenas… esperando.
Por: Marina Rocha Antunes

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