O Retrato Velho
A poeira dançava nos raios de sol que invadiam a sala, iluminando as caixas amareladas de fotografias empilhadas no chão. Dona Inês, com seus 70 anos e as mãos marcadas pelo tempo, vasculhava um passado guardado em papelão. Seus olhos, antes vivos e curiosos, agora pareciam embaçados pela saudade e pelo cansaço de uma vida.
Ali, entre centenas de rostos anônimos e paisagens desbotadas, ela encontrou. Uma fotografia antiga, o papel já com a textura de um tecido gasto. Era ela, Dona Inês, em seu casamento. Jovem, radiante, ao lado de seu amor de juventude, o saudoso Antônio. A cor desbotara, um tom sépia que remetia a tempos de esperança e promessas sussurradas em noites quentes de verão no interior de Minas. O vestido branco impecável, o sorriso largo de Antônio, os olhos dele fixos nos dela. Um instante congelado que ela carregava na alma.
Ela a levou para a cozinha, a luz forte da janela permitindo uma visão mais nítida. Serviu-se de um café forte, o aroma amargo preenchendo o ar. Puxou uma cadeira e sentou-se, a fotografia pousada sobre a mesa de fórmica, desgastada de tantas refeições compartilhadas. Naquele dia, o sol castigava o asfalto de Belo Horizonte, e o ar carregava o cheiro de poluição e de pão quente saindo da padaria da esquina.
Ao longo dos dias seguintes, Dona Inês mantinha a fotografia sempre à vista. Pela manhã, ao despertar, era a primeira coisa que via. No almoço, enquanto comia seu arroz com feijão, ela a observava. E à noite, antes de dormir, um último olhar para aquele rosto jovem e feliz. Foi então que ela notou.
No primeiro dia, Antônio parecia um pouco mais distante na imagem. O brilho em seus olhos, que antes ela jurava ter visto, parecia diminuído. Ela atribuiu à memória, às ilusões de uma velha. No segundo dia, a barba dele, que na foto original era raspada, apareceu ligeiramente por fazer. Uma sombra sutil que ela ignorou, concentrando-se na delicadeza do véu do seu vestido.
No terceiro dia, o ar na cozinha ficou mais denso. O café parecia ter perdido o sabor. A mão de Antônio, que repousava gentilmente em sua cintura, agora parecia um pouco mais pesada, um pouco mais tensa. E o sorriso dele… ah, o sorriso dele. Antes um sorriso de pura alegria, agora parecia um contorcer de lábios, uma máscara fugaz de algo que ela não conseguia definir.
Dona Inês, com o coração em disparada, pegou a fotografia com as mãos trêmulas. Levou-a para o quarto, para a luz fraca do abajur. As cores que antes eram vivas, mesmo que desbotadas, agora pareciam sujas, como se uma camada de fuligem tivesse se assentado sobre elas. O vestido branco de seu casamento não era mais branco, mas um tom pálido, sujo de terra. E os olhos de Antônio…
Naquela noite, a imagem de Antônio a encarava com uma frieza aterradora. O brilho de amor havia desaparecido por completo, substituído por um vazio gélido. Havia algo em sua expressão que a fazia recuar, um prenúncio sombrio que ela nunca havia percebido antes. Aquele homem ao seu lado, o homem de seus sonhos, parecia um estranho.
Na manhã seguinte, Dona Inês não tocou no café. A fotografia jazia sobre a mesa da cozinha. Os cabelos de Antônio, antes escuros e sedosos, agora pareciam emaranhados, desgrenhados. Sua pele, antes rosada pela juventude, adquirira um tom acinzentado, quase cadavérico. E a mão dele em sua cintura… agora parecia agarrá-la com força, com uma possessividade que lhe gelava a alma.
Ela não conseguia mais suportar. A fotografia não era mais um lembrete do seu amor, mas um espelho cruel que revelava o que ela havia se recusado a ver por tantos anos. Ela se lembrava de suas brigas, de suas ausências, das palavras duras que ele disse em momentos de raiva. Lembrava-se de como ela o amou incondicionalmente, mesmo quando ele a machucava. Mas a fotografia ia além, revelava uma escuridão que ela nunca soube que existia, um horror que a imagem parecia absorver, como se o próprio tempo se alimentasse de suas memórias e as distorcesse em algo terrível.
Naquele dia, o sol ainda brilhava lá fora, mas para Dona Inês, o mundo havia se tornado escuro. Ela olhou para a fotografia uma última vez. O rosto de Antônio estava distorcido em uma máscara de dor e raiva. Parecia que ele estava tentando gritar, mas um silêncio sepulcral o aprisionava na imagem. E em seus olhos, que antes eram o espelho de seu amor, agora havia o reflexo de algo terrível, algo que ela não conseguia identificar, mas que a consumia. Ela fechou os olhos, sentindo o peso de tudo aquilo. Quando os abriu novamente, a fotografia ainda estava lá, mas algo parecia ter mudado novamente, um leve tremor que fazia a imagem balançar, como se estivesse prestes a se desfazer por completo, levando consigo todos os seus segredos sombrios. Ou talvez, apenas esperando o próximo olhar para revelar um horror ainda maior.
Por: Catarina de Assis Mendonça

Deixe um comentário