O Reflexo Inesperado de Dona Laura

O Reflexo Inesperado de Dona Laura

O sol da tarde, insistente como sempre em Belo Horizonte, dourada os espelhos empoeirados do antiquário. Dona Laura, seus setenta anos gravados em rugas finas ao redor dos olhos azuis que um dia foram intensos, passava os dedos calosos sobre um grande espelho oval com moldura de bronze envelhecido. Não era um espelho qualquer. Havia algo nele, um murmúrio silencioso que parecia chamar por ela.

“Este é especial, senhora,” disse o dono do estabelecimento, um homem jovem com ar de quem sabia mais do que contava. “Dizem que ele mostra aquilo que a gente mais deseja.”

Laura deu um sorriso cansado. Desejo? Ela mal se lembrava do que era desejar algo com a força que lhe permitisse mover montanhas. A vida a havia moldado em uma senhora de hábitos firmes: café às seis, o jornal dobrado sobre a mesa, a atenção dividida entre as novelas das seis e as daminhas de honra que a visitavam semanalmente – suas netas, claro. Casada cedo demais com um homem bom, mas previsível, a paixão se esvaiu como água na areia, deixando apenas a cumplicidade da rotina e a saudade de um futuro que ela imaginara diferente, mas jamais ousara perseguir.

Hesitante, ela se aproximou. O bronze frio tocou sua pele, e o vidro, surprisingly clear, a encarou. De início, apenas seu reflexo desbotado, o vestido de chita estampado, o cabelo grisalho preso em um coque frouxo. Mas então, as bordas do espelho começaram a vibrar, não fisicamente, mas em sua visão, como o calor que emana do asfalto em um dia de verão.

As rugas ao redor de seus olhos pareceram se suavizar, a pele adquirir uma luminosidade que ela não via há décadas. E o vestido… o vestido de chita deu lugar a um tecido liso, de um azul profundo, elegante. Seus cabelos estavam soltos, caindo em ondas castanhas e cheias sobre os ombros. Um sorriso, tímido mas presente, despontou em seus lábios, um sorriso que carregava a promessa de um riso fácil, de uma alegria ainda não vivida.

À sua frente, no reflexo, não estava a Dona Laura que entrava no antiquário. Estava uma jovem, vibrante, com um olhar que espelhava o brilho do sol. E atrás dela, emergindo da penumbra do salão de festas que parecia se formar no vidro, um vulto masculino. Ele se aproximava com passos firmes, o sorriso nos lábios, um sorriso que Laura, em algum lugar profundo de sua alma, sentiu como se o conhecesse. Havia uma familiaridade assustadora naquele gesto, naquela curva da boca.

Não era o seu falecido marido, João. A figura era diferente, mais intensa. O abraço que ela sentiu, mesmo sem sentir, era um abraço que prometia confidências, que sussurrava planos ousados, que incendiava a alma. A música suave que parecia ecoar do espelho era de um ritmo que ela nunca ouvira, mas que a embalava em um êxtase desconhecido. Ela se viu dançando, rindo com liberdade, o mundo em seus pés.

Um choque elétrico percorreu o corpo de Dona Laura. Não era a memória de um momento qualquer. Era a materialização de um caminho não trilhado, de um amor que nunca existiu, de uma coragem que nunca se manifestou. A jovem no espelho era ela, mas a Laura que podia ter sido se tivesse dito “sim” a outro olhar, a outro convite, a outra vida.

A vendedora a olhava com expectativa. O reflexo começou a se desfazer, a imagem da jovem desvanecendo, substituída novamente pela sua figura envelhecida, o vestido de chita retornado ao seu lugar. O espelho voltou a ser apenas um objeto antigo e empoeirado.

Laura sentiu um nó na garganta, uma mistura de tristeza e uma estranha e inesperada esperança. Aquele espelho não mostrava um desejo, mas sim a sombra persistente de uma escolha. A jovem no reflexo parecia lhe implorar, um sussurro silencioso que dizia: “Você ainda pode, Laura. Ainda há tempo para o azul profundo, para o riso solto, para a dança sem receios.”

Ela hesitou, o coração disparado. A moldura fria parecia queimar em suas mãos. Voltou a olhar para o espelho, mas ali, agora, só havia seu reflexo comum. A música e o vulto masculino haviam sumido. O antiquário parecia voltar ao seu estado normal, abafado e silencioso.

Dona Laura comprou o espelho. Levou-o para casa, instalou-o no quarto de visitas, onde a luz do sol o banhava por algumas horas do dia. Ninguém mais viu o que ela viu. Mas de vez em quando, quando a solidão apertava ou a rotina se tornava pesada demais, ela entrava naquela sala e olhava para ele. E por um instante, apenas um instante fugaz, sentia o calor de um amor que nunca a tocou, o ritmo de uma dança que nunca aconteceu, e um sorriso, o dela, o da Laura que poderia ter sido, renascia em seus olhos, incerto, mas inegável. O que ela faria com essa revelação, com essa cicatriz de um passado que não existiu, apenas ela e o espelho sabiam.


Por: Marina Rocha Antunes

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