O reflexo em um espelho que se move independentemente do seu dono.
A CASCA POLIDA
O sol da tarde, teimoso e dourado, escorria pelas venezianas empoeiradas do quarto de Dona Lurdes. Tinha o cheiro acre de poeira e das ervas secas que ela guardava em saquinhos de algodão, um perfume antigo que se agarrava às paredes caiadas. Dona Lurdes, com seus 70 anos recém-completados, sentou-se à beira da cama, o corpete de cambraia desabotoado, o cabelo ralo e branco emaranhado como a espuma do mar. Aos seus pés, um espelho oval, herança da mãe, de moldura lascada e vidro escurecido pelo tempo, repousava sobre um pequeno aparador de mogno.
Naquele dia, algo estava diferente. Dona Lurdes se levantou com a lentidão habitual, o corpo reclamando dos anos e das longas noites de preocupação. Aproximou-se do espelho para ajeitar o colarinho da blusa, um gesto mecânico que repetia desde menina. Mas o reflexo… o reflexo não a acompanhou.
Sua mão ergueu-se, e no espelho, a mão do reflexo permaneceu parada, os dedos finos curvados sobre um livro invisível. O coração de Dona Lurdes deu um pulo, um pássaro assustado em seu peito. Olhou em volta. A casa estava silenciosa. Seu neto, o pequeno Léo, dormia no quarto ao lado, o ronco abafado pela porta fechada. O cachorro, o caramelo vira-lata que atendia por “Pingo”, roncava no tapete da sala. Estava sozinha.
Tentou novamente. Um passo para a direita. O reflexo permaneceu imóvel, os olhos fixos em um ponto no vazio. Um arrepio percorreu sua espinha, um frio que não vinha da brisa que entrava pela janela. O que era aquilo? Uma travessura do vidro antigo? Uma miragem do sol incidindo de forma estranha?
Ela estendeu o braço. O reflexo não moveu um músculo. Pelo contrário, o reflexo virou a cabeça levemente para o lado, como quem observa um inseto irritante. Dona Lurdes paralisou. Era como olhar para si mesma, mas em outro tempo, em outra vida. Os olhos do reflexo, embora com o mesmo tom castanho que os seus, pareciam mais vívidos, menos carregados de cansaço.
O medo inicial deu lugar a uma estranha fascinação. Passou os dias seguintes observando o espelho. Às vezes, o reflexo a imitava perfeitamente, as rugas ao redor dos olhos se formando no mesmo ritmo que as suas, o sorriso melancólico aparecendo em sincronia. Outras vezes, ele se movia com uma liberdade desconcertante. Olhava para o teto com curiosidade, ou tocava a própria bochecha com um gesto de ternura que Dona Lurdes não se permitia mais.
Uma tarde, enquanto Dona Lurdes folheava o álbum de fotos antigas, o reflexo em seu espelho começou a cantarolar uma melodia. Uma canção que ela não ouvia há décadas, uma que seu falecido marido, Seu Joaquim, costumava cantar enquanto regava as roseiras no quintal. As lágrimas brotaram nos olhos de Dona Lurdes. O reflexo, com a mesma emoção, levou uma mão ao peito.
Ela começou a conversar com ele. No início, sussurrando, hesitante. Depois, com mais confiança. Contava sobre as dificuldades com Léo, sobre as contas que não fechavam, sobre a saudade de Seu Joaquim. E o reflexo a ouvia, com uma compreensão silenciosa que a consolava mais do que qualquer palavra dita em voz alta. Às vezes, o reflexo acenava com a cabeça, como se concordasse, ou inclinava os ombros em um gesto de empatia.
Certa manhã, Dona Lurdes acordou com uma sensação de vazio. O espelho estava lá, em seu lugar, mas o reflexo… o reflexo não se moveu. Nem mesmo quando ela fez um gesto dramático com as mãos. Olhou, olhou. Não havia nada de incomum, exceto pela ausência daquele outro “eu”.
Levantou-se, o corpo ainda pesado. Aproximou-se. O espelho refletia apenas o quarto, o sol teimoso, a cama desfeita. Mas então, seus olhos pousaram na superfície polida. E ali, bem no centro, onde antes estava o reflexo de seu rosto, viu uma imagem nova. Era Léo. Ele dormia profundamente, o rosto sereno, a boca entreaberta em um suspiro.
Dona Lurdes tocou a superfície fria do espelho. A imagem de Léo permaneceu ali, serena. Ela sabia que a casca polida guardava segredos, ecos de vidas, desejos não expressos. E naquele espelho, talvez, pudesse ver não apenas o que era, mas o que poderia ter sido, ou o que ainda estava por vir. A brisa entrou pela janela, trazendo o cheiro de terra molhada da chuva que caíra durante a noite. E Dona Lurdes ficou ali, olhando para o sono tranquilo do neto, sem saber se a ausência do reflexo era um adeus, ou um convite para olhar mais fundo.
Por: Beatriz Almeida Vianna

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