O Reflexo de Umbra
O espelho no corredor do apartamento de Dona Marlene sempre foi um tanto embaçado, a moldura de latão polido já mostrava as marcas do tempo e da umidade que insistia em subir pelas paredes do prédio antigo em Copacabana. Marlene, com seus 70 anos e um olhar cansado que já viu mais primaveras do que imaginava, raramente se detinha ali. Preferia a nitidez calculada do seu espelhinho de bolsa, onde conferia a linha da sobrancelha, o brilho discreto do batom. O espelho do corredor era coisa do passado, um vestígio da juventude da casa, talvez de algum inquilino anterior que gostasse de se admirar com grandiloquência.
Mas, ultimamente, algo mudava naquele embaçado. Não era apenas a poeira que se acumulava, nem a oxidação do metal. Era o próprio reflexo. Começou sutilmente. Um vulto que parecia se mover quando ela passava, uma sombra que se alongava de forma antinatural. Dona Marlene, mulher de fé e de pouca imaginação para superstições, atribuía a tudo ao cansaço, à má iluminação, talvez até à sua visão que, dizia o oftalmologista, “estava se despedindo com elegância”.
Certo dia, porém, o vulto se tornou uma figura. Estava parado atrás dela, no reflexo. Um homem magro, com cabelos oleosos e um sorriso que mais parecia um esgar. As roupas que ele vestia eram escuras, surradas, e algo em seus olhos… um brilho faminto, assustador. Marlene parou. O coração disparou, um tambor frenético no peito que ressoava nos ouvidos. Ela se virou rapidamente. Ninguém. Apenas o corredor vazio, o papel de parede desbotado com desenhos de flores esquecidas, o cheiro familiar de mofo e incenso.
Voltou o olhar para o espelho. O homem ainda estava lá, agora mais nítido, mais presente. Ele não a olhava diretamente, mas parecia flutuar, um espectador invisível de sua vida. Marlene apertou o corrimão da escada, sentindo as unhas fincarem na madeira envernizada. Começou a desviar do espelho, fazendo voltas maiores pelo apartamento, cruzando o corredor apenas com os olhos baixos, o passo apressado.
Seus netos, Léo e Bia, a visitavam aos sábados. Léo, com seus 17 anos, vivia grudado no celular, imerso em mundos virtuais que Marlene não compreendia. Bia, com 12, era mais atenta, cheia de perguntas e com um olhar penetrante que parecia enxergar mais do que os adultos queriam que ela visse.
Num sábado, Bia se distraiu com um brinquedo antigo no aparador e, ao se virar, seus olhos encontraram o espelho. Ela soltou um grito abafado.
“Vó! Tem alguém ali!”
Marlene congelou. Sua primeira reação foi negar, proteger a menina da sua própria angústia.
“É só um reflexo, querida. A luz faz coisas estranhas.”
Bia franziu a testa. “Não, vó. Tem um homem. Ele tá… triste.”
Marlene olhou. E lá estava ele, o homem do reflexo, com o mesmo sorriso estranho, mas agora, Bia tinha razão, havia uma sombra de desespero em seus olhos. Ele parecia se contorcer de dor, suas feições se distorcendo como se estivessem derretendo. As paredes do corredor atrás dele, no reflexo, pareciam se curvar, ganhar formas retorcidas, um ambiente opressor e claustrofóbico.
Léo, alheio ao terror que se instalava, finalmente tirou os olhos do celular. “Que porra é essa, vó?” Ele se aproximou, curioso. Ao ver o reflexo, seu rosto empalideceu. A figura no espelho parecia se multiplicar, sombras escuras começaram a surgir ao redor do homem, rastejando como tinta em água. As flores do papel de parede no reflexo se transformavam em garras longas e finas, prontas para agarrar.
Marlene sentiu uma náusea avassaladora. O espelho não refletia mais seu corredor, nem a imagem de seus netos. Refletia um inferno particular, uma dimensão distorcida onde o desespero se manifestava em formas grotescas. O homem do reflexo começou a sussurrar, um som arrastado, inaudível, mas que parecia penetrar na mente de Marlene, trazendo consigo o peso de todas as suas perdas, de todos os seus arrependimentos.
“Para com isso! Para de olhar para isso!” gritou Marlene, a voz trêmula. Ela tentou cobrir o espelho com um lençol, mas ele parecia resistir, o tecido escorregando como se estivesse vivo. O homem no reflexo a observava, e pela primeira vez, Marlene viu um lampejo de reconhecimento em seus olhos famintos. Era como se ele esperasse por ela, como se o espelho fosse um portal e ela, a convidada não anunciada.
Bia começou a chorar. Léo, com uma coragem recém-descoberta pelo pânico, pegou um vaso de planta e o arremessou contra o espelho. O vidro estilhaçou com um estrondo. Pedaços caíram no chão, mas a imagem do homem, distorcida em mil fragmentos, parecia pairar no ar por um instante antes de desaparecer. O corredor voltou a ser apenas um corredor. O cheiro de mofo e incenso. A poeira.
Mas a sensação permaneceu. Um frio na espinha, a certeza de que algo terrível havia se alojado naquele espaço. Dona Marlene olhava para os cacos espalhados no chão, e em cada fragmento, por um instante, ela jurava ver um olho observando. E ela sabia que, mesmo sem o espelho, a distorção havia entrado em sua vida, e talvez, apenas talvez, ela já estivesse refletida nela há muito tempo. Ela se perguntava: o que aquele espelho mostrava antes de se quebrar? E o que aconteceria se ela tentasse juntar os cacos?
Por: Beatriz Almeida Vianna

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