O profeta do fim.

O profeta do fim.

O Profeta do Fim.

O pó subia em espirais finas quando o caminhão da prefeitura passava, levantando o cheiro acre da terra seca e do chorume esquecido do bueiro entupido na esquina. Dona Elza, na soleira da porta da sua casa modesta com pintura descascada e um vaso de comigo-ninguém-cantando murcho, bufou. Outro dia igual. O sol rachava o asfalto da rua sem nome do bairro periférico, onde o lixo se acumulava com a obstinação dos descasos.

Foi nesse cenário que Jonas apareceu. Ninguém sabia de onde ele vinha, apenas que um dia estava lá, sentado no banquinho da praça desbotada, a poucos metros da bola de futebol murcha que servia de brinquedo para os moleques. Vestia roupas simples, surradas, mas limpas. O olhar, no entanto, era o que prendia a atenção. Profundo, inquieto, como quem enxerga além do verniz da normalidade.

No início, era só mais um figura para os vizinhos apontarem, cochicharem. “O louco da praça”, diziam. Mas Jonas não falava com ninguém. Ficava horas ali, quieto, apenas observando. Com o tempo, começou a falar. Baixinho, no começo, com os pássaros que pousavam perto dele, com o vento que balançava as poucas folhas da mangueira centenária. Depois, com as crianças que se aproximavam, curiosas.

“O tempo está se esgotando”, dizia, com uma voz que soava como areia deslizando. “A Terra geme. As raízes choram. Vocês não sentem?”

As crianças, com a inocência que a realidade ainda não corrompeu totalmente, o olhavam com espanto. Os adultos, ocupados com boletos, fofocas e a luta diária para sobreviver, desviavam o olhar, aumentando o passo. Dona Elza, porém, sentia um arrepio estranho.

Ela era uma mulher calejada pelas agruras da vida. Viúva nova, criou os filhos sozinha, vendeu quentinhas na feira por vinte anos, viu o marido sucumbir a uma doença traiçoeira que parecia ter sido anunciada em sussurros de dor e negligência. A vida lhe ensinou a não acreditar em promessas fáceis, em profecias milagrosas. Mas o olhar de Jonas… ele era como um espelho que refletia os seus próprios medos mais profundos.

Um dia, Jonas apontou para o céu. “Veem aquela nuvem? Ela carrega a fúria que vocês semeiam. Em breve, ela vai desabar.”

Poucos dias depois, a chuva veio. Não era a chuva mansa que esperavam para aliviar o calor. Era um temporal violento, torrencial, que arrastou terra, entulho e medo pelas vielas do bairro. As casas mais baixas foram invadidas pela água barrenta, o pouco que as famílias tinham se misturava à lama. Gritos de desespero ecoaram pela noite.

O desastre serviu de catalisador. As pessoas que antes ignoravam Jonas, agora o olhavam com um misto de temor e respeito. Ele não se gabava, não dizia “eu avisei”. Continuava ali, no banquinho, observando.

“A cada escolha, um caminho se molda”, ele sussurrava para quem se atrevia a ouvir. “Vocês escolhem o concreto sobre a vida. Escolhem o acúmulo sobre o cuidado. E a terra não suporta mais.”

Um jovem, com os olhos vermelhos de tanto chorar pela perda de seus poucos pertences, aproximou-se. “E o que a gente faz, então? Para onde a gente vai?”

Jonas levantou o olhar para o céu agora claro, com um sol ainda impiedador. “Vocês já estão no caminho. Mas a direção pode ser mudada. É preciso escutar. Escutar o que a terra diz, o que os outros dizem, o que o silêncio grita.”

Dona Elza, na sua porta, observava a cena. As palavras de Jonas ressoavam nela como um sino distante. Ela pensou na sua horta esquecida, no tanto de plástico que acumulava sem necessidade, nas brigas banais que travava com os vizinhos. O que ela estava semeando?

A cidade, indiferente, continuou seu curso. Os noticiários falaram do temporal como mais um incidente isolado, uma fatalidade climática. Mas no bairro, algo havia mudado. As pessoas começaram a olhar mais para o céu, a conversar mais entre si, a recolher o lixo que antes jogavam nas ruas. A praça, outrora desbotada, começou a ganhar um novo tom de esperança.

Jonas continuou no seu banquinho, um ponto de quietude em meio ao burburinho da vida que, teimosamente, tentava se reerguer. Dona Elza, um dia, levou-lhe um copo de água fresca e um pedaço de bolo. Ele aceitou com um leve aceno, o mesmo olhar profundo, mas agora, um leve sorriso parecia se desenhar nos seus lábios.

O fim, afinal, não era um ponto final, mas talvez um convite. Um convite para enxergar o que estava ali, sob os pés, ao redor, dentro. E a resposta, se existia, não estava nas profecias, mas nas mãos que começavam a se estender. O que viria depois, ninguém sabia ao certo. Mas o pó continuava a subir, e a vida, com sua teimosia ancestral, seguia o seu curso, agora com uma pergunta ecoando no ar: qual o caminho que escolhemos trilhar?


Por: Marina Rocha Antunes

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