O pintor da desgraça.

O pintor da desgraça.

O Pintor da Desgraça

O cheiro acre de tinta a óleo e suor empapava o pequeno ateliê, um cômodo apertado no terceiro andar de um prédio antigo no centro de Porto Alegre. Elias, com os ombros curvados sob o peso de anos de trabalho incessante, misturava um tom de ocre que trazia a cor da terra seca do pampa, mas tingida com a amargura de uma vida que parecia não ter tido um verniz de alegria. Seus dedos, grossos e manchados de pigmentos, moviam-se com uma precisão melancólica sobre a tela em branco. Ele não pintava paisagens idílicas nem retratos vibrantes. Elias pintava a desgraça.

Não era a desgraça estrondosa de guerras ou desastres naturais. A desgraça dele era silenciosa, insidiosa, aquela que se aninha nos cantos das vidas comuns. Pintava o olhar vazio de Dona Lurdes, a vizinha que perdia o marido para um infarto súbito e agora passava os dias enfiada em casa, o chá morno esquecido na xícara. Pintava as mãos calejadas de seu Geraldo, o porteiro do prédio, que recebia o salário no último dia do mês e, no dia seguinte, já contava as moedas para a feira, o semblante resignado sob o sol implacável. Elias via a tristeza nos detalhes: no véu de poeira sobre os móveis, na rachadura que se aprofundava na parede, no silêncio pesado de um lar desfeito.

A cidade lá fora pulsava em seu ritmo próprio. O burburinho das ruas, o apito distante de um bonde, as risadas passageiras de estudantes que saíam da UFRGS – tudo isso chegava aos ouvidos de Elias como um murmúrio distante, uma melodia que ele não conseguia mais sintonizar. Sua arte era seu refúgio e sua prisão. Amigos de outrora, daqueles tempos de juventude e ambição desmedida, já não o procuravam. “Ele se perdeu nas sombras”, diziam, com um misto de pena e alívio por não partilharem do mesmo abismo.

Havia uma tela em particular que o consumia. Nela, não havia figura definida, apenas a sugestão de uma mãe tentando abraçar um filho que se desvanecia em sua frente, um borrão de azul e cinza que parecia sugar a luz do ambiente. Elias lutava com aquela imagem há meses. Sentia a dor dela, a impotência esmagadora, mas as cores pareciam resistir, traindo a profundidade de seu desespero.

Um dia, uma jovem, Ana, uma artista promissora com olhos que brilhavam com uma curiosidade insaciável, bateu à sua porta. Ela ouvira falar dele, do “Pintor da Desgraça”, e buscava uma perspectiva diferente, um olhar que ousasse despir a realidade de seus véus de complacência. Elias, relutante, a deixou entrar. Ela não se assustou com a atmosfera sombria, nem com as telas que pareciam sussurrar lamentos. Ao contrário, seus olhos percorriam cada pincelada com uma atenção genuína, um respeito que Elias não sentia há muito tempo.

Ana passou a visitá-lo com frequência. Não oferecia conselhos, nem tentava resgatá-lo. Apenas observava, fazia perguntas pontuais, trazia cafés fortes e pães quentinhos da padaria da esquina, o perfume adocicado do trigo competindo com o da tinta. Elias começou a falar, a contar sobre os rostos que via na rua, sobre as histórias não contadas que habitavam as fachadas envelhecidas do centro. E, de repente, as cores começaram a fluir com mais liberdade. Não eram cores de esperança, ainda não. Eram as cores da verdade, as nuances da dor, a beleza áspera da resistência.

Um dia, Ana apareceu com uma notícia: uma galeria no bairro Moinhos de Vento, conhecida por exibir trabalhos experimentais, estava disposta a uma exposição individual de Elias. Ele recuou, assustado. Mostrar a desgraça dele, a desgraça dos outros, a uma plateia que talvez quisesse apenas um alívio efêmero?

“É a sua voz, Elias”, disse Ana, com a mesma firmeza gentil. “E essa voz precisa ser ouvida. Talvez eles não se sintam apenas tristes. Talvez se sintam vistos.”

A noite da abertura chegou. As luzes claras da galeria, tão diferentes da penumbra de seu ateliê, pareciam agredir as telas. As pessoas circulavam, cochichavam, apontavam. Elias sentiu um nó na garganta. Ele observava seus quadros, as dores congeladas em pigmentos, e via rostos conhecidos: Dona Lurdes, Seu Geraldo, e tantos outros anônimos cujas vidas ele havia capturado.

No meio da multidão, ele avistou um homem de terno impecável, a postura ereta, um sorriso polido. A princípio, Elias o ignorou, mais um apreciador indiferente. Mas então, o homem parou diante de “O Abraço Que Se Perde”, a tela que o atormentava. Seus olhos, antes distantes, fixaram-se na imagem com uma intensidade que fez Elias prender a respiração. Uma lágrima solitária rolou pela face do homem, traindo a fachada de compostura. Ele não se envergonhou. Limpou-a discretamente e continuou a olhar, como se procurasse algo que a tela pudesse lhe oferecer, ou talvez, que ele pudesse oferecer à tela.

Elias sentiu uma estranha quietude tomar conta dele. A desgraça que ele pintava não era um monstro a ser expurgado, mas uma verdade a ser compartilhada. E, naquele momento, sob as luzes brilhantes da galeria, ele se perguntou se, ao dar forma à dor alheia, ele não estaria, de alguma forma, apenas espelhando a desgraça que também habitava, adormecida, no coração de todos. A questão pairou no ar, tão palpável quanto o cheiro de tinta, esperando apenas o olhar atento de quem quisesse enxergar.


Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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