O pesadelo recorrente que contém a chave para um assassinato real.

O pesadelo recorrente que contém a chave para um assassinato real.

O Eco das Sombras

O cheiro de café requentado grudava no ar da cozinha de Maria Cecília, misturando-se à umidade que pairava mesmo em dias ensolarados de Salvador. A louça amontoada na pia parecia um monumento à sua rotina exaustiva. Mais uma noite em claro, mais um vislumbre daquilo que a perseguia: um corredor escuro, o assoalho rangendo sob passos apressados, e o som inconfundível de um tecido rasgando. E sempre, no final, o vulto. Um vulto sem rosto, mas com a silhueta que ela jurava reconhecer.

Há meses o pesadelo a atormentava, cada repetição um pouco mais nítida, um pouco mais cruel. A princípio, ela o atribuía ao estresse do trabalho no hospital, aos plantões intermináveis, às perdas que a faziam se sentir impotente. Mas a repetição obsessiva, os detalhes que se aprofundavam com o tempo, começaram a corroer sua sanidade. Ela se via acordando ofegante, o suor gelado escorrendo pelas têmporas, o coração martelando contra as costelas como um pássaro enjaulado.

Um dia, em uma de suas fugas matinais pelas ruas do Pelourinho, buscando um pouco de ar fresco que dissipasse as sombras noturnas, ela parou em frente a uma pequena galeria de arte. Lá dentro, emolduradas, rostos de gente comum, capturados em instantes de pura humanidade. Um senhor cochilando em uma cadeira de balanço, um casal de mãos dadas em uma praça, uma criança com um balão colorido. E então, ela viu.

Em um retrato, um homem de meia-idade, o olhar cansado mas penetrante, um leve sorriso nos lábios. A camisa listrada, as mãos ligeiramente cruzadas. Era ele. O vulto. Não um monstro, não uma figura fantasmagórica, mas um homem real. O choque a atingiu como um soco no estômago. Ela se aproximou, o nome do retratado gravado em uma pequena placa: Elias Santos.

Maria Cecília não conseguia se lembrar de onde conhecia Elias Santos. O nome soava familiar, mas as memórias eram nebulosas, como lembranças de um sonho esquecido ao acordar. O pesadelo, no entanto, ganhava uma nova dimensão. O corredor, o ranger do assoalho, o som do tecido… Ela começou a vasculhar notícias antigas, a revirar seus arquivos mentais.

Uma tragédia. Uma tragédia antiga, abafada pela rotina da cidade, esquecida pela maioria. Uma mulher desaparecida, uma vizinha de seu antigo bairro, em um tempo que parecia pertencer a outra vida. A mulher, Lúcia. E Elias Santos, o marido.

O corredor escuro do pesadelo começou a se formar em sua mente com contornos mais precisos. Era o corredor da casa de Lúcia e Elias. O ranger do assoalho, um som peculiar que ela reconheceu em uma visita antiga à casa deles. E o tecido rasgando… Seria o véu de um vestido? Lúcia era conhecida por sua paixão por bordados, por costurar suas próprias roupas.

A linha entre o pesadelo e a realidade se tornou tênue, perigosa. Maria Cecília, agora impulsionada por uma necessidade visceral de desvendar o eco que a assombrava, começou a investigar. Conversou com vizinhos antigos, desenterrou arquivos policiais. Descobriu que Elias Santos, após o desaparecimento de Lúcia, havia se mudado, sumido. Ninguém sabia ao certo o que acontecera com ele.

Em uma noite chuvosa, o som dos pingos nas telhas amplificando a melancolia, Maria Cecília reviveu o pesadelo com uma clareza aterradora. O corredor, o ranger, o tecido… E desta vez, no final, o vulto não era apenas uma silhueta. Era Elias Santos, ajoelhado, as mãos manchadas de algo escuro, e ao seu lado, um pedaço de tecido branco, bordado com um fio dourado, um pedaço de um vestido que ela, de alguma forma, sabia ser de Lúcia.

A chave. A chave para o assassinato de Lúcia estava ali, no eco do seu próprio subconsciente, nas sombras de um pesadelo que se recusava a ser apenas um sonho. Mas o que fazer com essa verdade? Elias Santos havia desaparecido há anos. O crime prescreveria? A justiça, se é que haveria justiça, seria apenas um murmúrio distante? A imagem de Elias Santos, o homem do retrato, com seu olhar cansado, mas penetrante, pairava em sua mente. O que ele sentiu naquele corredor escuro? A culpa? O desespero? Ou apenas um silêncio gelado? E Maria Cecília, a mulher que sonhava com um crime esquecido, ficava ali, sob o som da chuva, com o peso de uma verdade que, quem sabe, nunca veria a luz do dia. O eco, porém, não cessaria.


Por: Isabela Fernandes Couto

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