O pacto secreto que une as gerações de uma família a uma floresta sombria.
O Sussurro das Raízes
O cheiro da terra úmida, da mata que exalava o perfume pungente das folhas em decomposição, era o ar que Ana Clara respirava desde menina. Não era um cheiro comum, era a fragrância ancestral da Mata da Sombra, um pedaço de floresta sombria que abraçava a pequena vila de São Miguel, em pleno sertão nordestino. Para a maioria, era um lugar de temor, de lendas sussurradas em torno das fogueiras, de histórias de criaturas que se escondiam sob o véu de samambaias gigantes e árvores retorcidas. Para Ana Clara, era casa.
Sua avó, Dona Alzira, uma mulher de pele enrugada como a casca de uma árvore centenária e olhos que guardavam a sabedoria de incontáveis pores do sol, era a guardiã desse legado. Desde pequena, Dona Alzira levava Ana Clara para trilhas que não constavam em mapas, ensinando-lhe os nomes das ervas que curavam febres e feridas, os cantos dos pássaros que anunciavam a chuva e, mais importante, os segredos da Mata.
“Esta floresta, minha neta,” Dona Alzira dizia, a voz rouca como o farfalhar das folhas secas, “ela nos dá o que precisamos, e nós, em troca, a protegemos. É um pacto, um laço que une você, a mim, e a todas que vieram antes.”
Ana Clara não entendia bem o “pacto”. Era algo sobre honrar a terra, sobre não tirar mais do que se precisava, sobre devolver ao solo o que ele oferecia. Mas a avó falava com uma seriedade que gelava os ossos, uma convicção que transcendia as palavras. E havia algo na Mata, uma presença palpável, um murmúrio constante que parecia vir das raízes profundas da terra, que ressoava em Ana Clara.
Um dia, Seu Juvino, o dono da maior fazenda da região, decidiu que a Mata da Sombra era um obstáculo para sua expansão. Queria desmatar uma boa parte para plantar eucaliptos, uma monocultura que prometia lucro rápido. A vila se dividiu. Alguns temiam o poder de Seu Juvino, outros, a ira da floresta que tantos contos sombrios anunciavam.
Ana Clara, agora uma jovem de 20 anos, sentiu um aperto no peito, um pânico silencioso. A ameaça à Mata era uma ameaça a ela, à sua família, à própria vida que conhecia. Aos poucos, os murmúrios da floresta se tornaram mais intensos em sua mente, um clamor por proteção que ela não podia ignorar.
Naquela noite, Dona Alzira preparou um chá forte de ervas que Ana Clara nunca vira antes. O aroma era terroso, com um toque adocicado e amargo. Sentadas na varanda, sob o céu estrelado que parecia mais denso por causa da proximidade da Mata, Dona Alzira falou de um modo que nunca falara antes.
“Os ancestrais que caminharam por estas terras antes de nós, Ana Clara, eles não eram apenas fazendeiros ou criadores. Eles conheciam a linguagem da terra. E essa linguagem é a da Sombra.” Dona Alzira pegou a mão enrugada de Ana Clara, a pele áspera transmitindo uma força inesperada. “Você sente isso, não sente? O chamado? É a floresta, lembrando você do que somos.”
Ela explicou sobre os rituais, sobre a energia que a floresta acumulava, sobre as almas que nela repousavam. Não eram fantasmas, mas presenças, guardiãs. E o pacto era o compromisso de perpetuar esse ciclo, de ser o elo entre o mundo dos homens e a sabedoria ancestral da terra.
“Seu Juvino não entende que o lucro de hoje pode custar a alma de amanhã. Ele mexe com algo maior do que ele imagina.” Dona Alzira suspirou, um som pesado como a umidade da noite. “Você terá que fazer uma escolha, minha filha. Continuar com o que a vida lhe impõe, ou abraçar o que a Sombra lhe pede.”
O dilema corroía Ana Clara. De um lado, o medo das consequências de desafiar um homem poderoso como Seu Juvino. De outro, a lealdade inabalável à avó, à terra, a essa ligação invisível e poderosa que sentia pulsar dentro de si. Ela viu nos olhos da avó o peso de gerações, a responsabilidade de um legado que parecia ter sido depositado inteiramente em seus ombros.
No dia seguinte, quando as primeiras motosserras começaram a rugir na beira da Mata, um silêncio incomum se abateu sobre São Miguel. Não era o silêncio do medo, mas o silêncio da expectativa. Ana Clara, com a mão apertando uma pedra lisa e escura que Dona Alzira lhe dera, caminhou em direção ao barulho.
Ao chegar à linha da floresta, viu Seu Juvino, rodeado por seus capatazes e com um sorriso de satisfação no rosto. Os troncos das primeiras árvores já jaziam caídos. Ana Clara respirou fundo, sentindo o cheiro familiar da terra e das folhas, e um calafrio percorreu sua espinha. Algo na Mata mudou. As sombras pareceram se aprofundar, os sons da floresta se intensificaram, tornando-se um rosnado baixo e ameaçador.
Ela não sabia o que faria. Mas sabia que não ficaria parada. E a Mata, parecia, também não. Uma brisa fria varreu a clareira, sem motivo aparente, trazendo consigo um sussurro antigo, um convite para mergulhar na escuridão e descobrir o verdadeiro custo de um pacto secreto que une as gerações de uma família a uma floresta sombria.
Por: Marina Rocha Antunes

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