O Fio Invisível do Rio

O Fio Invisível do Rio

O cheiro de café requentado era um perfume constante na sala de estar de Seu Elias, um aroma denso que parecia impregnar as cortinas empoeiradas e as pilhas de jornais amarelados. A luz fraca da tarde, filtrada pelas nuvens cinzentas que anunciavam a chuva típica de outono em São Paulo, dançava sobre as fotografias desbotadas na estante: um Elias jovem, sorriso largo, fardado; outro, mais velho, ao lado de uma mulher de olhar doce que ele chamava carinhosamente de “flor”. Mas seu olhar, agora, estava fixo num recorte de jornal, as bordas desfiadas pelo tempo, datado de vinte anos atrás. “Jovem estudante de Artes desaparecida. Pistas escassas.”

Clara era o nome dela. Quinze anos, cabelos cacheados cor de ébano, olhos que, nas fotos recuperadas, pareciam carregar a intensidade de quem via o mundo em cores vibrantes que Elias, com o passar dos anos, sentia esmaecerem. Ela sumira sem deixar rastro. Uma saída para comprar tintas, uma rua movimentada da Vila Madalena, e então, nada. O caso virou um fantasma, uma sombra que se instalou nos cantos da memória de Elias, alimentando-se dos cochilos inquietos e dos dias cada vez mais longos desde que a aposentadoria lhe roubara o propósito.

Ele revivia cada detalhe. As conversas com os pais dela, o olhar devastado da mãe, o silêncio resignado do pai. As horas intermináveis vasculhando becos, interrogando vizinhos que fingiam não saber de nada, o frio na barriga ao encontrar um lenço com as iniciais de Clara perto do rio Tietê, mas que, ironicamente, não levava a lugar algum. O Rio Tietê, essa veia poluída que cortava a cidade, era a única testemunha silenciosa, mas muda. Elias sentia o peso de sua incapacidade de fazê-la falar.

A chuva começou a cair lá fora, batendo ritmicamente contra o vidro da janela. Elias serviu-se de mais café, o amargor familiar traçando um caminho conhecido em sua garganta. Ele se lembrava do primeiro ano, da urgência, da esperança teimosa. Depois, vieram os outros casos, a rotina que pedia o foco do presente. Mas Clara… Clara permanecia. Ela era o nó na garganta que não se desfazia, o ponto de interrogação eterno em sua carreira.

Certo dia, um pacote chegou. Sem remetente. Dentro, um pequeno caderno de capa dura, puída pelo uso, e um frasco de tinta acrílica, ainda selada, na cor azul-cobalto que ele sabia ser a favorita de Clara. O caderno estava em branco, exceto pela primeira página, onde uma única frase estava escrita com a caligrafia elegante e inconfundível de Clara: “Onde a arte se encontra com a água, a verdade escorre.”

Elias sentiu um arrepio. Onde a arte se encontrava com a água? Ele pensou nas galerias de arte da Vila Madalena, nos grafites que adornavam os muros, mas também pensou nos clubes de arte que funcionavam às margens de rios, nas exposições improvisadas em praças próximas a cursos d’água. A tinta azul… ele a pegou, a textura fria do plástico em seus dedos enrugados.

Naquela noite, Elias saiu. Não para um local específico, mas para caminhar. Andou pelas ruas molhadas, o cheiro da terra úmida misturando-se ao da poluição. Passou pela Vila Madalena, agora silenciosa sob a chuva. Seus olhos, antes opacos, pareciam procurar algo, um fio invisível que o ligasse ao passado. Ele parou em frente a um muro coberto de grafites, as cores vibrantes, mesmo sob a escuridão. Havia um grafite novo ali, uma figura feminina em tons de azul, com um olhar perdido, olhando para o céu. Elias se aproximou, o coração acelerado. A assinatura do artista era apenas um símbolo: um pincel mergulhado em uma gota d’água.

O detetive aposentado, assombrado pelo caso não resolvido, não sabia se havia encontrado uma pista ou uma armadilha. Mas, pela primeira vez em vinte anos, sentiu um leve sopro de esperança, ou talvez apenas o presságio de que a verdade, como a água, sempre encontra um caminho para escorrer, mesmo que em tons de azul-cobalto e nas margens esquecidas do crepúsculo.


Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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