O Fio Desfiado
O sol da tarde castigava o asfalto rachado da Rua do Sossego, e o cheiro de fritura misturado ao de terra molhada após a rega dos coqueiros fazia a cabeça de Dona Lúcia girar. Sentada no banquinho de madeira gasto em frente à vendinha do Seu Zé, ela remexia o café frio na xícara, o mesmo movimento repetido por tantos dias. As cinzas não eram apenas um gosto na boca, mas uma presença, um resíduo amargo que parecia ter se instalado permanentemente.
Ela pensava em Beto, o filho. Não em seu riso fácil, nem nos abraços apertados que a envolviam. Pensava no silêncio que ele deixara, um silêncio tão palpável quanto o calor que a sufocava. Era como se as palavras que ele nunca disse tivessem virado pó e voltado para ela, para impregnar cada canto de sua existência. O último telefonema, uma voz embargada, um adeus sem explicação, um celular desligado para sempre. E depois, o vazio.
Seu Zé, um homem de poucas palavras e bigodes grossos, lançou-lhe um olhar de soslaio. Ele sabia. Todos na Rua do Sossego sabiam, em graus variados de discrição. O sumiço de Beto era o assunto velado, sussurrado nas filas do mercado, compartilhado em cochichos nas calçadas. Dona Lúcia, no entanto, se afogava em seu próprio silêncio, guardando a dor como um tesouro sombrio.
Ela alisou o tecido da saia, um vestígio desbotado de um tempo mais leve, quando Beto ainda era moleque e corria descalço pela rua, com os joelhos ralados e um sorriso maroto no rosto. Aquele Beto não existia mais, ou talvez existisse em algum lugar que ela não conseguia alcançar. A esperança era uma brasa moribunda, e as cinzas em sua boca eram o lembrete constante de que tudo o que restava era a fumaça.
Em casa, a casa de Beto, que ela teimava em não arrumar completamente, cheirava a poeira e saudade. As paredes guardavam ecos de suas músicas altas, dos seus amigos que riam, da sua presença vibrante. Dona Lúcia sentou-se na cadeira que era dele, a madeira afundando ligeiramente sob seu peso. Pegou o álbum de fotos. Um Beto bebê, um Beto na escola, um Beto com os amigos em alguma festa na praia, todos sorrindo. Sorrisos que pareciam zombar da sua dor presente.
Ela fechou o álbum com um baque surdo. A sensação de cinzas na boca se intensificou. Não era apenas a ausência física de Beto, era a incerteza, a falta de fechamento, o medo do que poderia ter acontecido. O fantasma do “e se” a assombrava, corroendo sua sanidade como cupins roem madeira.
Uma carta chegou naquela tarde. Entregue por um carteiro que nunca tinha visto antes, com um carimbo de uma cidade distante, que Dona Lúcia mal conseguia pronunciar. As mãos dela tremiam ao rasgar o envelope. Não era de Beto. Era do advogado dele. Uma notificação. Uma reviravolta inesperada que prometia não trazer respostas, mas talvez… talvez algo mais. Algo que poderia desenterrar as cinzas ou fazê-las virar brasa novamente. Dona Lúcia abriu a carta, o silêncio da casa agora prenhe de uma nova e desconhecida tensão. O gosto de cinzas na boca persistia, mas um fio tênue de algo novo, incerto, começava a se desenrolar.
Por: João Pedro Silveira

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