O espelho da escuridão.
O espelho da escuridão.
O cheiro de café recém-passado, misturado ao aroma adocicado do pão de queijo que Dona Lurdes assava às sextas, era o perfume da minha infância. Aquele fogão a lenha, com a chapa sempre aquecida, era o coração da casa humilde onde cresci, em um bairro que se aninhava nas colinas de Ouro Preto. A luz dourada do fim de tarde sempre tingia as paredes descascadas com um calor nostálgico.
Eu era Luísa, uma garota magrinha, de cabelos rebeldes e olhos que pareciam querer capturar todos os segredos do mundo. Meu pai, Seu Joaquim, era um pedreiro de mãos calejadas e alma gentil, sempre com uma história para contar sobre as construções centenárias da cidade. Minha mãe, Dona Lurdes, era a espinha dorsal da família, a rocha onde todos nos apoiávamos, uma mulher de fé inabalável e sorriso acolhedor.
O espelho não era um objeto de luxo. Era antigo, de moldura gasta e com algumas marcas do tempo, pendurado no corredor estreito que levava aos quartos. Ninguém se lembrava de onde ele viera. Para mim, ele era um portal, um confidente silencioso. Eu passava horas ali, observando minhas próprias feições infantis, projetando medos e desejos. Era lá que eu via o reflexo da garota que eu queria ser, e também, às vezes, o da garota que eu temia me tornar.
A adolescência chegou como uma tempestade tropical. As mudanças em meu corpo eram desconcertantes. As inseguranças, antes sutis, ganharam contornos nítidos diante daquele espelho gasto. As rugas finas que começavam a se formar no canto dos olhos de minha mãe, o cansaço em seu rosto após longas horas de trabalho, a forma como Seu Joaquim franzia a testa ao pensar nas contas, tudo isso se tornava mais palpável quando eu me via ali.
Um dia, a escuridão que eu tanto temia encontrar no espelho se materializou em um convite. Um convite para fugir, para ser alguém diferente. Aos dezesseis anos, apaixonada por um rapaz mais velho, com promessas de um futuro glamoroso longe daquele meu bairro pacato, tomei uma decisão que ecoaria por anos. Deixei uma carta apressada sobre a mesa de madeira da cozinha, o cheiro de café ainda pairando no ar, e parti.
O mundo lá fora não era o que eu idealizara. As luzes eram mais brilhantes, sim, mas ofuscantes. As promessas se desvaneceram como névoa sob o sol forte. A solidão se tornou uma companheira constante. E o espelho, esse meu antigo confidente, agora se manifestava em vitrines de lojas caras, em fachadas de prédios modernos, em reflexos fugazes em carros luxuosos. Mas eu evitava. Evitava ver o que me tornara. A luísa que partira era uma sombra pálida de quem eu me via agora.
Anos se passaram. A busca por reconhecimento me levou a caminhos tortuosos. Erros foram cometidos. Cicratrizes, visíveis e invisíveis, se acumularam. O brilho nos meus olhos, antes curioso e esperançoso, transformou-se em um brilho mais calculista, quase opaco.
Um telefonema inesperado me puxou de volta. Minha mãe. A voz frágil, cansada, mas ainda com aquele calor reconfortante. Dona Lurdes se fora. A casa, o cheiro de café, o pão de queijo de sexta-feira, tudo parecia um sonho distante, um eco abafado.
Voltei. O voo de volta, o carro que me levou pelas estradas sinuosas de Minas, a paisagem que eu julgava ter esquecido, tudo me atingiu com uma força avassaladora. O bairro estava mais velho, as casas mais desgastadas, mas o mesmo calor familiar, a mesma atmosfera acolhedora, pareciam pairar no ar.
E lá estava ele. No corredor estreito, ainda pendurado na parede, o espelho da escuridão. A moldura mais gasta, a superfície embaçada pela poeira do tempo. Hesitei. Meu coração martelava no peito. O que eu veria? A mulher que a vida me forjou? Ou a garota que eu abandonei?
Respirei fundo. A brisa leve que entrava pela janela do corredor trazia consigo o cheiro inconfundível das montanhas de Ouro Preto. O cheiro de terra, de chuva, de saudade. E então, eu olhei. O reflexo que me encarava não era o da garota dos sonhos rebeldes, nem o da mulher endurecida pelas intempéries. Era um rosto marcado, sim, com linhas de preocupação e arrependimento, mas nos olhos, um lampejo. Um lampejo que, talvez, fosse a luz da esperança tentando romper a escuridão.
Eu vi o espelho. E o espelho, eu acho, me viu de volta. A pergunta pairava no ar, silenciosa: o que fazer com o reflexo que eu encontrei? Para onde ir, a partir daqui?
Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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