O Espelho D’Água que Não Esquecia
A poeira do sertão colava na pele de Maria Benedita, um véu eterno que nem o banho diário no tanque de barro conseguia remover completamente. O sol, cruel e implacável, pintava de ouro pálido a paisagem ressecada de Boa Vista do São Francisco. O açude, ou o que restava dele nos meses de estiagem, era uma cicatriz azul na terra rachada, um convite ambíguo para um alívio ilusório.
Era ali, à sombra rarefeita de um mandacaru, que Dona Zulmira, a parteira da região, passava suas tardes. Os dedos nodosos, marcados pela vida e pela terra, brincavam com um fio de algodão, o mesmo que usava para amarrar a cabeça das mulheres em trabalho de parto. Seus olhos, profundos como poços antigos, pairavam sobre o açude, uma vigilância serena que escondia uma dor calada.
Há vinte anos, o açude levara seu neto, o pequeno Tiago, durante uma enchente traiçoeira. A chuva, que deveria ser benção, se transformara em fúria, e a água subira rápido demais, levando o menino levado que gostava de pescar girinos com uma vareta. Os corpos, disseram, se perderam na correnteza, arrastados para o rio maior, e de lá para o mar. Mas Dona Zulmira nunca acreditou.
As histórias sobre o açude eram sussurradas, fragmentos de lendas que a igreja desaprovava, mas que o povo, na solidão e na esperança, acalentava. Contavam que, em certas noites de lua cheia, ou em dias de névoa densa, aqueles que haviam sido engolidos pela água não se perdiam para sempre. Retornavam. Não como fantasmas, mas como ecos.
Maria Benedita, com seus quinze anos e um futuro incerto desenhado nas linhas finas de suas mãos, ouvia essas histórias com um misto de fascínio e pavor. Sua irmã mais velha, Clara, desaparecera há seis meses. Uma noite, depois de uma discussão com o pai sobre um casamento arranjado, Clara saiu de casa, dizendo que precisava respirar. Nunca mais voltou. A polícia fez a busca, mas sem sucesso. O último lugar onde a viram foi perto do açude, o ar pesado com o cheiro de terra molhada e a promessa de chuva.
Dona Zulmira, em sua sabedoria silenciosa, percebia a angústia da garota. Via o mesmo brilho febril nos olhos de Maria Benedita que vira em seu próprio olhar há duas décadas. Um dia, enquanto a menina recolhia lenha seca perto do açude, Dona Zulmira se aproximou.
“O vento às vezes traz de volta o que a gente pensa que perdeu, menina”, disse ela, a voz rouca como o coaxar distante de um sapo.
Maria Benedita a olhou, confusa. “Como assim, vovó Zulmira?”
“O açude tem memória”, continuou Dona Zulmira, sem desviar os olhos da água. “Ele devolve. Não sempre como a gente quer, mas devolve.”
Naquela noite, o céu estava coalhado de estrelas. Um véu de névoa se espalhava sobre o terreno, engolindo as formas familiares e transformando o mundo em um borrão de sombras e murmúrios. Maria Benedita não conseguia dormir. A imagem de Clara, seu sorriso vibrante e a melodia de sua risada, a assombrava. Impulsionada por uma força que não compreendia, ela saiu de casa, a luz fraca do lampião a guiando pelo caminho de terra.
O ar perto do açude era denso, úmido, com um cheiro salobro que parecia penetrar até os ossos. A névoa a envolveu, e por um momento, Maria Benedita sentiu a sensação de estar submersa, de estar flutuando em um silêncio profundo e gelado. Ela podia ouvir a própria respiração, um som abafado, como se viesse de muito longe.
E então, um som. Um som que fez seu coração disparar. Uma melodia. Era a cantiga que Clara costumava cantarolar enquanto lavava a roupa no tanque. Uma melodia simples, doce, que agora ecoava pela névoa, fraca, etérea. Maria Benedita se moveu na direção do som, seus pés deslizando na grama úmida.
Chegou à margem do açude. A névoa era tão espessa que mal conseguia ver a água. Mas o som estava ali, perto. E algo mais. Uma forma. Uma silhueta indistinta, parada na beira da água. Maria Benedita prendeu a respiração.
“Clara?”, sussurrou, a voz trêmula, quase inaudível.
A silhueta não se moveu. A cantiga parou. Um silêncio sepulcral se instalou, quebrado apenas pelo zumbido dos insetos noturnos. E então, lentamente, a forma começou a se desfazer, a se dissipar na névoa, como fumaça. Maria Benedita estendeu a mão, em desespero, mas seus dedos tocaram apenas o ar frio e úmido.
Ela ficou ali, parada, o corpo rígido, a mente um turbilhão. O que ela tinha visto? Uma ilusão? Um eco? Uma lembrança que a névoa trouxera à tona? Ou era mesmo Clara, em uma forma que ela não podia compreender?
Voltou para casa antes do amanhecer, o corpo exausto, a alma pesada. O sol da manhã, quando finalmente rompeu a névoa, parecia um consolo frio. Dona Zulmira a encontrou sentada no tanque, a cabeça baixa, a água fria escorrendo por seu rosto como lágrimas silenciosas. A Arquivista do Crepúsculo não precisou perguntar. A memória do açude, a memória da água que não esquecia, se gravou mais uma vez em seus olhos. E Maria Benedita, agora, carregava em si um novo segredo, uma nova pergunta, um novo fardo. O açude havia devolvido algo, mas o que era, e para sempre, permaneceria em suas margens, guardado pelo véu da névoa e pelo silêncio da terra seca.
Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

Deixe um comentário