O escultor de pesadelos.
O Escultor de Pesadelos
As mãos de Elias, calejadas e fortes como as raízes de um mangue, estavam sempre manchadas de barro. Não era um barro qualquer, mas aquele úmido e escuro das margens do rio São Francisco, um lodo que parecia guardar as memórias do sertão em sua textura densa. Elias era escultor, mas as formas que tirava do barro raramente traziam beleza serena. Traziam o suor que pingava da testa dos retirantes, a fome que roía o ventre das crianças sob o sol escaldante, o medo que paralisa ao ver a enxurrada levar tudo. Ele esculpia pesadelos.
Seu ateliê era um cômodo apertado nos fundos de uma casa modesta em Petrolina. O cheiro de argila molhada misturava-se ao de café requentado e ao mofo que insistia em se espalhar pelas paredes descascadas. Em frente a uma janela suja, onde a luz amarelada do fim de tarde mal ousava entrar, Elias trabalhava. Agora, moldava um rosto. Não um rosto bonito, mas um rosto rugoso, marcado por anos de sol na pele, a boca entreaberta em um grito silencioso, os olhos fundos, vazios de esperança, fixos num ponto invisível. Uma réplica exata do desespero que ele via todos os dias no olhar dos seus vizinhos.
Clara, sua filha, seis anos, com os cabelos emaranhados e um vestido desbotado, costumava sentar-se num caixote de feira, observando-o em silêncio. Ela não entendia completamente as figuras grotescas que brotavam das mãos do pai, mas sentia o peso delas, a tristeza que emanava do barro. Às vezes, tocava timidamente uma das esculturas, um pé encolhido de um menino sem nada nos ombros, e Elias sentia um aperto no peito. Ele fazia aquilo para que os outros não esquecessem, para que a dor não fosse varrida para debaixo do tapete da rotina. Mas para Clara, era apenas a tristeza do pai em forma de barro.
O dilema de Elias era antigo e doloroso. Ele era artista, levava no sangue a necessidade de criar, de dar forma ao que sentia. Mas o que ele sentia, o que ele via, era a dureza da vida, a injustiça que se instalara tão firmemente quanto as ervas daninhas na terra seca. Havia quem admirasse seu trabalho, que dissesse que ele era um cronista do sofrimento, um tradutor da alma sertaneja. Mas havia também o sussurro, o olhar de repulsa, o “que coisa feia” dito em voz baixa. Elias, no fundo, desejava criar algo que trouxesse alívio, um sorriso, uma flor de barro em um campo árido. Mas a realidade era teimosa demais.
Um dia, um homem de terno caro, que Elias não reconheceu, apareceu em seu ateliê. Ele olhou as esculturas com um interesse frio, um interesse de quem compra, não de quem sente. Passou o dedo pela cicatriz de um rosto deformado, pela mão estendida em súplica.
“São… pungentes”, disse o homem, com uma voz polida que não combinava com o ambiente. “Preciso de algo para uma galeria em São Paulo. Algo que fale da realidade do Brasil profundo. Seu trabalho… tem um certo apelo.”
Elias sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Vender seus pesadelos? Permitir que a dor que ele via e tentava eternizar se tornasse uma peça de exibição distante, um exotismo para olhos que não conheciam o sabor da poeira na boca? Olhou para Clara, que observava a cena com os olhos arregalados, segurando um pequeno pedaço de barro que ela mesma moldava, tentando fazer um solzinho.
“Quanto?”, perguntou Elias, a voz embargada.
O homem sorriu, um sorriso que não alcançava os olhos. Ele citou um valor que Elias jamais imaginara ter em mãos. Era dinheiro o suficiente para tirar Clara daquela casa apertada, para comprar remédios para sua mãe doente, para um futuro menos árduo.
Naquela noite, Elias não conseguiu dormir. O cheiro de barro parecia mais forte, mais opressor. Ele sabia que a arte, para muitos, era um refúgio. Mas para ele, era um espelho implacável. De manhã, enquanto o sol começava a pintar o céu de tons alaranjados, Elias pegou mais um pedaço de barro. Ele sabia o que precisava esculpir. Mas não para a galeria em São Paulo. Olhou para a janela, para a vida que pulsava lá fora, com toda a sua crueza e beleza resiliente. E começou a moldar. A questão permanecia: ele era um escultor de pesadelos, ou de verdades incômodas? E o que fazer quando a única forma de sobreviver era vender as imagens que mais o assombravam? Clara, ao acordar, o encontrou sentado em seu banquinho, as mãos sujas, mas os olhos voltados para o horizonte, um vislumbre de algo novo em sua fisionomia, algo que ele ainda não sabia nomear.
Por: Marina Rocha Antunes

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