O Eco do Asfalto

O Eco do Asfalto

O sol de fim de tarde beijava o concreto do Viaduto do Chá, pintando o céu de laranja e violeta. Na calçada, a figura de Clara se erguia, envolta em um xale de lã desbotada, as mãos firmes no velho violão de cordas gastas. Seus olhos, cor de mel em um rosto marcado pela vida, absorviam a multidão que, a cada nota, se tornava um oceano silencioso à sua frente. A voz de Clara não era apenas um som; era um abraço, um suspiro, uma lembrança que emergia do fundo da alma. Canções de amor e perda, de esperança e saudade, teciam um fio invisível que conectava cada passante, cada olhar perdido em seus pensamentos.

Não eram apenas os turistas que paravam. Eram os executivos em suas marchas apressadas, as mães empurrando carrinhos, os estudantes com seus fones de ouvido. Todos, por um instante, suspiravam, cativados pela autenticidade crua que emanava dela. O som do violão, meio desafinado, meio sublime, se misturava ao burburinho da cidade, criando uma melodia única, a trilha sonora improvisada de São Paulo. As moedas que caíam em seu estojo eram poucas, mas o ouro que ela extraía dos corações era incalculável.

Mas o brilho do asfalto atraía outros olhares, aqueles que viam oportunidades onde outros viam arte. Edgar Vale, com seu terno impecável e um sorriso que não chegava aos olhos, observava de longe. Ele era o tipo de homem que enxergava talentos como commodities, e Clara, com sua voz que arrastava multidões, era um tesouro escondido. A fama repentina, ainda que restrita ao espaço público, havia chegado a seus ouvidos.

Uma semana depois, Edgar a encontrou em um barzinho simples na Vila Madalena, onde ela cantava para um punhado de conhecidos e curiosos. Ele se apresentou com a cordialidade ensaiada de quem negocia diamantes. “Clara, seu talento é um presente para este país. Você merece mais do que o eco do viaduto.” Ele falava de contratos, de palcos iluminados, de um futuro onde sua voz seria ouvida por milhões. Clara, com a ingenuidade de quem sempre cantou para o vento, se sentiu em êxtase. A promessa de profissionalismo, de ter suas canções gravadas, de um lar mais quente para sua filha pequena, desarmou suas cautelas.

Os primeiros meses foram um turbilhão de novidades. Clara se viu em estúdios profissionais, com músicos talentosos e técnicos que poliam seu som. Edgar a apresentou como sua nova estrela, uma revelação genuína. Mas, aos poucos, as promessas começaram a se distorcer. As músicas que ela escrevia, tão pessoais e pungentes, eram substituídas por letras genéricas, comerciais. Os shows, que deveriam ser momentos de conexão, eram eventos fechados, acessos caros, onde o brilho das luzes ofuscava a verdade de suas canções.

“Edgar, não é isso que eu quero”, ela tentava argumentar. “Quero cantar para as pessoas, não para vitrines.”

Ele ria, um som seco e desprovido de humor. “Querida Clara, o que você quer é a ilusão. O que o público quer é o que eu vendo. E eles pagam bem por isso.”

Aos poucos, Clara percebeu a armadilha. Seu contrato era um labirinto de cláusulas ocultas, onde sua imagem e sua arte eram escravizadas. A cada tentativa de negociação, Edgar a ameaçava com o escuro, com o anonimato, com o risco de que sua voz, tão amada no viaduto, se perdesse para sempre no esquecimento. Ela via sua filha, com os olhos cheios de admiração por uma mãe que, na TV, parecia ter alcançado as estrelas, mas que, em casa, se desmoronava em silêncio.

O dilema a corroía. Continuar naquela gaiola dourada, alimentando a máquina de Edgar com sua alma, ou lutar por sua liberdade, arriscando perder tudo? O eco do viaduto parecia cada vez mais distante, um sonho acalentado em noites de insônia.

Uma noite, depois de um show onde a plateia parecia mais interessada nos smartphones do que em sua música, Clara estava em seu camarim. O espelho refletia um rosto cansado, um olhar que havia perdido parte de seu brilho. Edgar entrou, com seu sorriso habitual.

“Um sucesso, como sempre, Clara. Os investidores estão satisfeitos. E você está construindo um futuro.”

Clara olhou para ele, não com raiva, mas com uma tristeza profunda que aterrava a sua alma. Ela pegou sua bolsa, que continha apenas alguns pertences e um bloco de notas com suas canções antigas.

“Edgar”, disse ela, sua voz firme, recuperando a força que o asfalto lhe dera. “Eu não vendo futuro. Eu canto o presente. E o meu presente não é seu.”

Ela se virou e saiu, deixando Edgar Vale com seu sorriso congelado e o eco vazio de suas palavras. A noite era fria, o vento soprava forte pelas ruas de São Paulo. Clara não sabia para onde ir, mas sabia que, a qualquer momento, o sol voltaria a beijar o concreto. E, talvez, lá estivessem aqueles que ainda ouviam o eco do asfalto. Onde ela cantaria de novo. Ou talvez encontrasse outro caminho. O futuro era incerto, mas a escolha, pela primeira vez em muito tempo, era sua.


Por: Marina Rocha Antunes

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