O eco de risadas distantes em um ambiente vazio.
O ECO DE RISADAS DISTANTES EM UM AMBIENTE VAZIO
O sol da tarde se esgueirava pela janela alta e empoeirada do Salão Imperial, pintando listras douradas sobre o assoalho desgastado. O ar parado, denso com o cheiro de cera antiga e de poeira suspensa, parecia vibrar. Naquele silêncio quase palpável, um som tênue se insinuava, como um fio de fumaça tentando encontrar um escape: o eco de risadas distantes.
Clara, com seus quase setenta anos e as mãos calejadas de uma vida, parou de esfregar o lustre opaco. Seus olhos, acostumados à penumbra reconfortante, fixaram-se em um ponto invisível no espaço. O Salão Imperial, outrora palco de casamentos suntuosos, bailes de debutantes e reuniões familiares que ecoavam vida, agora jazia em um repouso melancólico. Apenas ela e Dona Lourdes, a zeladora de cabelos grisalhos presos em um coque impecável, restavam para zelar pelos fantasmas de outrora.
As risadas, Clara sabia, eram suas. Fragmentos de memória que o tempo teimosamente devolvia. Eram as risadas de seus filhos, pequenos e barulhentos, correndo pelo salão como duendes em busca de doces escondidos. Eram as gargalhadas de seu marido, Antônio, com a barriga tremendo de tanto rir de uma piada sem graça. Eram as risadas de todos aqueles que haviam compartilhado um instante de felicidade entre aquelas paredes agora tão silenciosas.
Dona Lourdes, que varria metodicamente um canto esquecido, soltou um suspiro longo e cansado. Ela também ouvia. Para ela, eram as vozes dos noivos de décadas passadas, os murmúrios de celebração que preenchiam o salão com uma energia que agora parecia uma miragem. Ou talvez fossem os ecos das festas juninas improvisadas, dos abraços apertados, dos beijos roubados.
“Eles ainda estão por aí, não é, Dona Clara?”, perguntou Dona Lourdes, a voz rouca e sem ânimo.
Clara se virou lentamente, um sorriso triste nos lábios. “Estão, Lourdes. São como as borboletas que voavam por aqui. Às vezes, a gente sente o bater das asas, mesmo sem ver.”
O Salão Imperial pertencia a uma antiga família que se mudara para o exterior há anos. Deixaram para trás o mobiliário pesado, os retratos emoldurados em prata e o cheiro inconfundível de história. Clara e Antônio foram os zeladores por mais de quarenta anos. Depois que Antônio se foi, levado pela doença que rouba a fala e a força, Clara continuou. Era o seu lugar. O seu refúgio. E o seu fardo.
Naquele dia, um jovem chamado Tiago apareceu. Tinha olhos curiosos e uma câmera profissional pendurada no pescoço. Era um fotógrafo, à procura de cenários abandonados para um projeto pessoal.
“Posso tirar umas fotos aqui?”, perguntou Tiago, a voz ressoando no vazio.
Clara assentiu, os olhos marejados, mas sem derramar lágrimas. “Fique à vontade. A casa está vazia, mas não está silenciosa.”
Tiago começou a fotografar. Capturava a poeira dançando nos feixes de luz, a rachadura discreta no teto que parecia uma cicatriz do tempo, os móveis cobertos por lençóis brancos que assumiam formas fantasmagóricas. Ele sentiu uma estranha melancolia, um misto de beleza e abandono.
Enquanto ele ajustava o foco em um piano antigo, com as teclas amareladas como dentes cariados, um som mais nítido chegou até ele. Uma risada infantil, clara e cristalina, vinda de um canto onde não havia nada além de sombras. Ele hesitou. Olhou para Dona Lourdes, que continuava a varrer com a mesma impassibilidade. Olhou para Clara, que observava o sol se pôr com uma serenidade enigmática.
“Ouviram isso?”, perguntou Tiago, a voz um pouco trêmula.
Clara sorriu, um sorriso que parecia ter atravessado séculos. “Ouvimos, meu rapaz. São eles. Sempre estão por perto, nos lembrando que a vida, de uma forma ou de outra, nunca se apaga por completo.”
Tiago, sem saber o que dizer, voltou para sua câmera. A risada havia sumido, mas a sensação permaneceu. A sensação de que aquele lugar, tão vazio fisicamente, transbordava de algo invisível, de ecos persistentes de felicidade e de dor. Ele tirou mais algumas fotos, mas agora via os objetos sob uma nova perspectiva. Cada rachadura contava uma história, cada raio de sol iluminava uma memória.
Quando o sol finalmente se despediu, mergulhando o Salão Imperial em uma escuridão suave, Tiago agradeceu e se retirou. Clara e Dona Lourdes ficaram. O silêncio voltou a reinar, quebrado apenas pelo suave farfalhar do varredor e pelo respirar compassado de duas mulheres que, como o salão, guardavam em si o eco de tantas vidas.
Ao sair para a rua, Tiago olhou para trás. A janela do Salão Imperial era um retângulo escuro contra o céu crepuscular. Mas, por um instante fugaz, ele teve a certeza de ter ouvido, vindo de dentro, o som inconfundível de uma festa que nunca terminava. E ele se perguntou: o que, afinal, era esse eco? Uma ilusão, uma lembrança persistente, ou a prova de que certas alegrias, uma vez vividas, jamais desaparecem, apenas mudam de frequência, esperando o momento certo para ressoar em um ambiente vazio.
Por: João Pedro Silveira

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