O eco de barbacena: em barbacena, um som perturbador emana das ruínas de um antigo sanatório, e aqueles que o ouvem de perto, perdem a sanidade e desaparecem.
O Eco de Barbacena
A noite em Barbacena tem um silêncio particular, um manto pesado que parece absorver até mesmo o sussurro do vento nas araucárias. Maria, com seus quase setenta anos e a pele enrugada como papel amassado, conhecia bem esse silêncio. Vivia com Dona Conceição, uma vizinha que há muito trocara a fala pelas observações e um fogão a lenha que fumegava suavemente em qualquer estação. A vida corria mansa, marcada pelo sino da igreja e pelo cheiro de pão assando nas padarias da cidade.
O sanatório, ou o que restara dele, era uma sombra no topo da Colina do Sol. Uma memória em tijolos desmoronados e janelas quebradas que a gente de Barbacena tentava ignorar. As histórias eram antigas, sussurradas em voz baixa nas filas do mercado: de tratamentos duros, de almas perdidas. Mas de um tempo para cá, algo mudara. Um som.
No começo, era como um chiado distante, um rádio mal sintonizado na madrugada. Maria, com seus ouvidos já cansados, o atribuía a algum animal noturno. Mas o som cresceu, ganhou corpo, tornou-se um lamento agudo, quase melódico, que se infiltrava pelas frestas das janelas, pela alma das casas. Era um som que parecia carregar a dor de séculos, um lamento sem palavras que se prendia na garganta.
Seu neto, Rafael, um rapaz de vinte e poucos anos, chegou da capital para cuidar dela após uma queda. Rafael trazia o cheiro da cidade grande, a pressa nos olhos, a impaciência com a lentidão de Barbacena. Ele achava tudo aquilo bobagem, histórias de gente velha. Mas o som, ah, o som o pegou desprevenido.
Uma noite, enquanto voltava da casa de Dona Conceição, onde fora buscar um remédio caseiro para a avó, Rafael ouviu. Estava perto do limite da cidade, onde as luzes se tornavam escassas e o ar mais frio. O som não era mais um chiado, era um canto, um chamado profundo que parecia vibrar em seus ossos. Ele parou, o corpo tenso, o coração batendo descompassado. O som o atraía, prometendo algo que ele não sabia explicar. Uma cura? Uma verdade?
Nos dias que se seguiram, Rafael mudou. O brilho nos olhos deu lugar a uma busca incessante, a um olhar perdido. Passava horas na varanda, a cabeça inclinada, como se tentasse decifrar o lamento. Maria, em seu silêncio sábio, percebeu. Via o neto se descolar do chão, do presente. Ele falava pouco, e quando falava, eram frases soltas, desconexas, sobre “o que chamam”, “o que grita”.
Dona Conceição, em um de seus raros momentos de lucidez vocal, segurou a mão de Maria. “O eco”, murmurou, a voz rouca como cascalho. “Ele chama os que ouvem. Chama os que escutam demais.”
Rafael desapareceu em uma terça-feira chuvosa. A cidade o procurou, como sempre procurava quem se perdia nos limites de si mesmo. Ninguém o encontrou. Algumas pessoas juraram ter ouvido o som, mais alto do que nunca, naquela noite, vindo da direção do sanatório. Outros disseram ter visto uma figura solitária subindo a Colina do Sol, um vulto que dançava sob a chuva fina, atraído por uma melodia que só ele parecia ouvir.
Maria ficou sozinha. O silêncio em sua casa parecia agora ainda mais profundo, mas por baixo dele, ela também ouvia. Não o lamento agudo, mas um eco mais sutil, uma saudade que se misturava ao medo. Olhava para a Colina do Sol, para as ruínas que guardavam seus segredos, e se perguntava quantas almas mais o eco de Barbacena chamaria para dançar em sua melodia esquecida. O som, contudo, não parecia diminuir. Continuava a ecoar, paciente, para aqueles que estivessem dispostos a escutar com o coração aberto. E o que viria depois, só o tempo, e talvez o eco, diriam.
Por: João Pedro Silveira

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