O Eco das Correntes no Casarão do Sol Poente

O Eco das Correntes no Casarão do Sol Poente

O sol de Paraty, mesmo no entardecer, ainda derramava um ouro denso sobre as pedras seculares das ruas. Mas no alto da ladeira que levava ao Casarão do Sol Poente, uma sombra já se adensava, densa e fria. O nome da casa, que um dia fora de um próspero senhor de engenho, agora sussurrava histórias de tormento e almas penadas, um eco persistente da escravidão que brotara nas fundações de seu luxo. Fui chamada, com minha equipe da “Veias da Alma”, para desvendar o véu que cobria aquele lugar.

Havia Pedro, o cético com seu equipamento de última geração, sempre à procura de explicações racionais. Havia Clara, a sensitiva, com seus olhos de águia para o invisível, que sentia as “vibrações” dos locais com uma precisão perturbadora. E havia eu, Beatriz Almeida Vianna, a historiadora, buscando as raízes do mal nas narrativas do passado, nas cicatrizes deixadas pela brutalidade humana.

Ao cruzarmos o portão enferrujado, um arrepio coletivo nos percorreu. O casarão, imponente e decadente, parecia engolir a luz restante. As janelas, como olhos vazios, fitavam-nos com um lamento silencioso. A primeira noite foi de exploração metódica. Pedro montou seus gravadores, câmeras infravermelhas e medidores de campo eletromagnético. Clara, de mãos juntas, caminhava pelos corredores empoeirados, franzindo a testa a cada porta fechada, a cada rangido da madeira antiga. Eu, com minha lanterna potente, vasculhava os cômodos, imaginando as vidas que ali se desenrolaram, os gritos abafados, as lágrimas derramadas.

O primeiro a sucumbir foi Pedro. Numa sala que, segundo os relatos, fora o “senzala de castigo”, ele passou a noite. Na manhã seguinte, o encontramos tremendo, pálido, os olhos arregalados de um terror incompreendido. “Eles me apertavam”, balbuciava, as mãos cobrindo a garganta. “Correntes, Beatriz. Sentia as correntes me sufocando. E o chicote…” Ele gesticulava freneticamente, descrevendo golpes que não existiam fisicamente, mas que o marcavam com uma dor fantasma. Sua lógica, antes férrea, desmoronara sob o peso de um medo ancestral, a materialização do medo de ser arbitrariamente punido, despojado de dignidade e força.

Clara, por sua vez, começou a ter visões fragmentadas. Caminhava pelos corredores e de repente parava, fixando o olhar em pontos aleatórios. “A negritude”, murmurava, com uma voz que já não era a sua. “A escuridão que não é falta de luz, mas ausência de esperança. Sinto a solidão de quem era tratado como objeto, sem nome, sem voz.” Ela começou a se retrair, a se cobrir com um véu de tristeza profunda, como se carregasse o peso de todas as almas perdidas, a angústia daquele que não possuía nem o direito de chorar. O medo que a consumia era o da invisibilidade, da desumanização, da perda da identidade sob o jugo da opressão.

Restamos eu e o casarão, a solidão se tornando palpável. As noites se tornaram mais longas, os sons mais nítidos. O uivo do vento parecia se misturar a lamentos distantes, o ranger das tábuas a passos arrastados. Uma noite, enquanto examinava um antigo diário do senhor de engenho, deparei-me com descrições cruéis de tortura. Palavras que falavam de açoite, de ferros quentes, de privação de sono e comida. Senti um arrepio não de frio, mas de um calor corrosivo, um suor que me escorreu pela espinha como lágrimas de fogo.

A partir dali, os meus medos começaram a se manifestar. Comecei a ter a sensação de estar sendo observada, de que a minha própria carne me traía. Imaginava-me acorrentada, a pele marcada por feridas que eu não sentia, mas que sabia estarem lá. O medo da escravidão, o medo de ser possuído, de ter a minha liberdade roubada, de ser reduzido a uma ferramenta sem vontade, me envolveu como um manto fúnebre. Comecei a sentir a fadiga crônica de quem trabalhou incansavelmente sob o sol impiedoso, a sede que não saciava, a fome que corroía por dentro. Cada sombra parecia esconder um capataz, cada eco um grito de dor.

Tentei resistir, agarrando-me à história, buscando a racionalidade em meio ao caos. Mas o casarão não era apenas um lugar, era um receptáculo de memórias, um campo de batalha de almas sofridas. Ele não assombrava com fantasmas etéreos, mas com o peso esmagador da crueldade humana. Os medos que nos consumiam não eram de entidades sobrenaturais, mas os ecos vivos e pungentes das torturas e do sofrimento infligidos naquele lugar. Fomos engolidos não por espíritos vingativos, mas pela própria história brutal que se recusava a ser esquecida.

No final, a única coisa que restou no Casarão do Sol Poente foi o silêncio, carregado de um peso insuportável. Eu, Beatriz Almeida Vianna, agora apenas um fragmento de memória, uma alma perdida em um labirinto de medos que remetiam a um passado doloroso. O casarão, mais uma vez, havia se alimentado, e as correntes que outrora prenderam corpos, agora prendiam as nossas almas no eterno eco da escravidão.


Por: Beatriz Almeida Vianna

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