O desaparecimento inexplicável de um membro de um grupo unido.

O desaparecimento inexplicável de um membro de um grupo unido.

O Vazio na Mesa do Bar

O cheiro era sempre o mesmo: uma mistura acre de cerveja barata, fumaça de cigarro que teimava em pairar apesar da lei, e o aroma adocicado e levemente azedo de pastéis de queijo quentinhos. O Bar do Zé, na esquina da Rua das Palmeiras com a Avenida Brasil, era o nosso santuário. Aquele canto com a mesa de madeira arranhada, marcada por incontáveis copos e histórias, pertencia a nós. Eram oito: eu, o Léo, o Bruno, a Júlia, o Thiago, a Carol, a Renata e o Dani. O Dani.

Era uma terça-feira chuvosa, daquelas que deixam o asfalto reluzente e o ar pesado. Tínhamos nos reunido para celebrar a aprovação da Júlia no concurso. Copos brindaram, risadas ecoaram, e o Dani, com seu jeito expansivo de sempre, comandava o coro de “Parabéns pra você”. Ele era o cola que nos mantinha juntos, o riso fácil que dissolvia tensões, o amigo que aparecia de madrugada com um pote de sorvete quando o mundo desmoronava.

Naquele dia, ele estava um pouco mais calado. Achei que fosse o cansaço. Ele andava com o sono pesado ultimamente, dizia que as noites eram longas e povoadas de pensamentos inquietos. O Léo, sempre o pragmático, lançou um olhar de preocupação. “Dani, tudo bem? Você tá meio sumido dos grupos, e hoje parece que tá mais ainda.” Dani apenas sorriu, um sorriso que não chegava aos olhos. “Tô bem, cara. Só pensando na vida.”

A noite seguiu, a chuva engrossou, e um a um, fomos nos despedindo. Combinamos de nos encontrar no sábado, para um churrasco na casa do Bruno. A última vez que vi o Dani foi quando ele acenou para o meu carro, o farol cortando a neblina úmida da rua. Ele estava sozinho, parado sob o toldo do bar, os ombros encolhidos contra a jaqueta surrada.

O sábado chegou, um sol tímido espreitando entre as nuvens. A churrasqueira do Bruno estava acesa, o cheiro de carne assando se misturando ao do mato úmido do quintal. Bruno apareceu na porta, o rosto marcado por uma ruga de preocupação. “Gente, cadê o Dani?”

Começamos a ligar. O celular dele caía na caixa postal. Mandamos mensagem. Nada. Aos poucos, o clima de festa foi se dissipando, substituído por um silêncio tenso. O Léo tentou ligar para a família dele, mas o número da mãe não atendia. A Renata, a mais sensível do grupo, começou a chorar baixinho. A Júlia, a recém-aprovada, segurava o braço dela com força.

O domingo foi um inferno de ligações, visitas à casa dele. A porta trancada, as cortinas fechadas. O carro dele estava na garagem. Nenhum sinal de arrombamento, nenhum bilhete. Era como se ele tivesse evaporado. A polícia foi acionada, a burocracia se instalou, as perguntas incessantes e vazias. “Ele tinha inimigos?” “Sofria de depressão?” “Algum problema financeiro?”

Nós sabíamos que não. Ou pelo menos, achávamos que sabíamos. O Dani era um livro aberto, mas as últimas páginas pareciam em branco. Vimos a transformação sutil, o brilho nos olhos diminuindo, a risada se tornando mais esporádica. Mas nunca imaginávamos que ele pudesse desaparecer. Não assim.

Os meses se arrastaram. As buscas diminuíram, a atenção da mídia se esvaiu. Restamos nós, os oito da mesa arranhada, agora sete. A mesa continuava lá no Bar do Zé, mas o espaço vazio ocupado pelo Dani ecoava mais alto que qualquer conversa. O cheiro de cerveja e pastel agora tinha um tom de melancolia.

Às vezes, em noites como aquela chuva de terça, quando o asfalto brilhava e o ar ficava pesado, eu me pegava olhando para a calçada em frente ao Bar do Zé, como se esperasse que ele surgisse, o sorriso nos lábios, a jaqueta surrada, pronto para contar a piada que ninguém entenderia, mas que nos faria rir de qualquer jeito.

O que aconteceu com o Dani? Essa pergunta pairava como a fumaça de cigarro no nosso santuário, sem resposta, sem explicação. Ele se perdeu? Fugiu? Foi levado? E o mais perturbador: será que a gente, tão unidos, não o vimos o suficiente? Não o ouvimos o suficiente? A mesa do bar, antes um símbolo de nossa irmandade, tornou-se um memorial silencioso à fragilidade dos laços humanos e à assustadora possibilidade de um vazio que se abre, sem aviso, levando consigo um pedaço de nós. E em cada olhar trocado, em cada silêncio prolongado, a dúvida persistia, corroendo: será que algum de nós conseguiria desaparecer assim, sem deixar rastros, sem um motivo aparente? E se sim, o que isso diria sobre a gente?


Por: Isabela Fernandes Couto

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