O Crepúsculo de Pedra Alta

O Crepúsculo de Pedra Alta

O cheiro de terra molhada pairava no ar, denso e familiar, anunciando mais uma garoa que se acostumava a lavar as ruas de paralelepípedos de Pedra Alta. Dona Elvira, com suas mãos nodosas que já haviam amassado farinha por décadas, sentiu a umidade subir pelas panturrilhas. Ela estava na varanda, um copo de café amargo na mão, observando as poucas luzes que ainda teimavam em se acender nas casas vizinhas. Aos poucos, o dia se despedia, como sempre, com tons alaranjados e violetas que a cidadezinha, aninhada entre serras, aprendera a amar.

Foi então que o céu se rasgou.

Não foi um trovão, nem um relâmpago. Foi um silêncio ensurdecedor, um vácuo súbito na sinfonia noturna que anunciava a chegada. Um objeto colossal, de um negro que não pertencia a nenhuma paleta terrena, deslizou sobre as colinas, engolindo a luz dos postes, das casas, das estrelas. Não havia som, apenas a sensação de algo imenso e impenetrável se instalando. A energia da rede elétrica, outrora tão confiável, esvaiu-se em um piscar de olhos. A escuridão que se abateu sobre Pedra Alta era absoluta, uma manta de chumbo que sufocava até o pensamento.

No beco atrás da padaria, Lucas, 17 anos, esperava o sinal do amigo para a partida de futebol noturna. O cheiro de pão recém-assado, agora misturado com um fedor metálico e desconhecido, o deixou apreensivo. O celular, antes uma fonte inesgotável de luz e distração, tornara-se um tijolo inerte. Ele sentiu um arrepio, não de frio, mas de um medo primordial, ancestral. Um medo que não vinha do escuro, mas da certeza de que aquele escuro não era natural, não era um fim de tarde qualquer.

Na casa dos Silva, a pequena Clara, 8 anos, agarrava-se à perna da mãe, Ana. O abraço apertado era o único porto seguro em um mundo que de repente se tornara assustador e incerto. O ursinho de pelúcia, que antes iluminava o caminho para os pesadelos, agora era apenas um pedaço de pano sem vida. Ana sentiu o cheiro acre de ozônio, algo que não conseguia identificar, mas que lhe apertava o peito. Ela olhava para a janela, esperando ver o reflexo de algo, qualquer coisa, que pudesse dar um sentido àquela treva opressora.

O silêncio se estendeu. Sem eletricidade, o burburinho habitual da cidade cessou. Nenhum carro nas ruas, nenhum latido de cachorro, nenhuma conversa nas calçadas. A nave, agora uma mancha indistinta contra um céu que já não se via, parecia observá-los. Não houve invasão violenta, nem lasers disparados. Apenas a presença, a imposição silenciosa de uma força que tornava tudo mais frágil, mais insignificante.

Os dias seguintes foram de raciocínio precário e instintos aflorados. A comida nos mercados, exposta ao calor inclemente, começou a estragar. A água, antes abundante nas torneiras, logo se tornou um luxo racionado. As pessoas se reuniam em grupos, as poucas velas e lampiões a querosene projetando sombras dançantes em rostos marcados pela apreensão. Conversavam em sussurros, teorias conspiratórias misturavam-se a preces desesperadas.

Lucas, impulsionado pela necessidade de proteger a irmã mais nova, Leo, começou a organizar expedições noturnas pela cidade. Usando lanternas a pilhas que em breve também se esgotariam, ele vasculhava casas abandonadas em busca de mantimentos e suprimentos. Em uma dessas incursões, ele se deparou com o corpo de um homem, caído no chão de uma mercearia, as mãos ainda estendidas em um gesto de desespero. O silêncio da morte, naquela cidade já silenciada, pesou mais que qualquer grito.

Dona Elvira, com sua sabedoria curtida pelo tempo, começou a compartilhar suas histórias. As memórias de tempos difíceis, de secas, de guerras, pareciam agora um bálsamo, um lembrete de que a humanidade já havia superado adversidades. Ela falava sobre a força da comunidade, sobre a importância de um olhar solidário, de uma mão estendida. Suas palavras ecoavam na escuridão, um fio tênue de esperança em meio ao desespero.

Ana, por sua vez, tentava manter uma rotina para Clara, contando histórias inventadas sobre as estrelas que não viam mais, sobre os dias que voltariam. Mas os olhos da filha, sempre tão curiosos, agora refletiam um medo profundo, uma inocência roubada pela ausência de luz. Ela sentia a responsabilidade esmagadora de ser o farol de esperança para sua filha, mesmo que ela mesma se sentisse à deriva.

Uma noite, enquanto a escuridão parecia ainda mais densa, um brilho fraco e pulsante emanou da nave. Um feixe de luz, de uma cor que ninguém conseguia descrever, varreu a cidade. Não houve dano aparente, nem reação imediata. Mas algo mudou. Os sons da natureza, antes abafados pela presença alienígena, voltaram a se manifestar, tímidos no início, depois com mais vigor. O cheiro metálico diminuiu, substituído gradualmente pelo odor familiar da chuva que caía suavemente.

A nave permaneceu. O escuro, no entanto, começou a ceder. As primeiras luzes de amanhecer, pálidas e incertas, tingiram o horizonte. A eletricidade retornou em alguns pontos da cidade, um sinal tímido de um mundo que se recusava a desaparecer completamente.

Mas Pedra Alta nunca mais seria a mesma. A nave pairava no céu, um lembrete permanente de sua vulnerabilidade, de sua pequenez. O que eles queriam? Por que escolheram aquele pequeno ponto no mapa? As perguntas flutuavam no ar, sem resposta. E enquanto os sobreviventes tentavam reconstruir suas vidas, com as cicatrizes daquela noite gravadas em suas almas, uma nova escuridão pairava sobre a cidade: a incerteza. A incerteza sobre o futuro, sobre a natureza do universo e sobre o lugar da humanidade nele. E a nave, impassível, continuava a ser a vigia silenciosa do crepúsculo eterno de Pedra Alta.


Por: João Pedro Silveira

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