O corpo de um homem com uma câmera quebrada no bolso, as últimas imagens são perturbadoras.

O corpo de um homem com uma câmera quebrada no bolso, as últimas imagens são perturbadoras.

O CHEIRO DE POEIRA E MANHÃ

A luz fria da manhã, filtrada pelas persianas de metal enferrujadas, arranhava os olhos de João. O cheiro de poeira, umidade e algo mais, algo vagamente metálico e pungente, agarrava-se ao teto baixo do quarto. O corpo na cama, o dele, parecia estranho, um peso desajeitado que não lhe pertencia completamente. Um nó na garganta o impedia de respirar direito. Cada movimento era uma tortura lenta, uma série de protestos silenciosos dos músculos e ossos.

Na mesinha de cabeceira, ao lado de um copo com restos de água e um comprimido a meio dissolver, repousava o celular. A tela estava rachada em teias de aranha que distorciam os ícones coloridos. João estendeu uma mão trêmula, os dedos grossos e calejados mal conseguindo a precisão necessária. A tela, mesmo quebrada, ainda acendia, emitindo um brilho fantasmagórico. Ele sabia o que tinha ali. Sabia, e isso era o pior.

Abrir a galeria foi como abrir uma caixa de Pandora. As imagens passavam, um borrão de cores e formas distorcidas. Uma rua escura, a luz de um poste piscando intermitentemente. O reflexo de um rosto pálido no asfalto molhado. Risadas secas, distantes, abafadas. O som ambiente, capturado com uma clareza perturbadora, era um zumbido baixo, pontuado por ruídos agudos e indefinidos. Ele tentou fechar os olhos, mas as imagens se imprimiam na retina, um filme maldito rodando a esmo.

Lembrou-se do bar, do suor pegajoso na testa, do gosto amargo da cerveja barata. Lembrava-se de Carlos, com seu sorriso torto e a promessa de “uma parada nova, irmão, que vai mudar tudo”. Lembrava-se da adrenalina subindo, da sensação de poder, da euforia efêmera que o levou a registrar tudo, como um turista em um inferno particular. A câmera do celular, sua companheira constante, a testemunha de dias banais e noites insanas. Agora, quebrada, ela se tornara o juiz.

A imagem seguinte fez seu estômago revirar. Um vulto, um borrão em movimento rápido, o som de algo se quebrando, um grito abafado. A câmera girou bruscamente, capturando fragmentos de corpos, rostos em pânico, a escuridão engolindo tudo. O cheiro metálico intensificou-se em sua memória, como se estivesse ali, no quarto empoeirado, impregnado nos lençóis sujos.

Ele sabia que o corpo encontrado na viela atrás do mercado não era apenas mais um corpo. Era o corpo de alguém que ele conhecia, ou pelo menos, que tinha compartilhado um momento de insanidade com ele. A reportagem na televisão, ontem à noite, passara despercebida em meio ao barulho da partida de futebol. Agora, ela ecoava em sua mente, as palavras sobre violência inexplicável, um ataque brutal em uma noite chuvosa.

O dilema o consumia. Aquelas imagens, fragmentadas e perturbadoras, eram a única prova. A prova de sua presença, de sua participação involuntária ou talvez, pior, de sua cumplicidade. O medo o paralisou. A câmera quebrada no bolso, um fardo pesado, um segredo que o sufocava. A polícia, o hospital, a vergonha. Ou o silêncio, a culpa que corroeria sua alma por dentro.

João olhou para suas mãos, mãos que haviam segurado a câmera, que tinham sentido o tremor daquele momento. Suas unhas estavam sujas, as cutículas roídas. Ele apertou o celular na mão, o vidro rachado perfurando sua palma. A luz fraca do dia iluminava o quarto, mas a escuridão dentro dele parecia apenas se aprofundar. As últimas imagens, perturbadoras, não eram apenas um registro. Eram um espelho. E o reflexo que via não era mais o de João, mas o de um fantasma assombrado pelas ruínas de uma noite perdida. O que ele faria agora? O que restava fazer? O cheiro de poeira e manhã pairava no ar, denso e carregado de perguntas sem resposta.


Por: Marina Rocha Antunes

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