O corpo de um homem com um mapa rudimentar desenhado na palma da mão, levando a um enigma.
O mapa do tesouro da dor
A mão de Seu Osvaldo, com a palma enrugada e as veias saltadas como raízes expostas, sempre foi um território familiar para eu, que já a beijei em abraços apertados de conforto e aperto de mãos em cumplicidade. Mas naquele dia, após o último suspiro dele no leito frio do hospital, meu olhar parou, fixo, numa marca que nunca havia percebido. Era um desenho rudimentar, quase apagado pelo tempo e pelo trabalho braçal, uma espécie de xícara estilizada com um traço que se estendia até a linha do coração. Um mapa, pensei, um mapa desenhado a tinta ou arranhado com a própria unha?
A morte de Seu Osvaldo deixou um silêncio ensurdecedor em nosso pequeno sobrado no bairro da Mooca. O cheiro de café fresco, que ele preparava todas as manhãs com o cuidado de um alquimista, agora parecia um fantasma persistente. Eu, Clara, sua filha única, me sentia como um navio à deriva num mar de memórias empoeiradas. O mapa na palma do meu pai era um enigma, um último sussurro de uma vida que eu acreditava conhecer por inteiro.
Ele era um homem simples, um aposentado da construção civil, de poucas palavras mas de uma sabedoria prática que me guiava desde sempre. Nunca foi de histórias de aventura, de tesouros enterrados. Sua vida era construída na rotina: o jornal da manhã, o futebol na TV aos domingos, as tardes na varanda observando o movimento da rua. O que poderia significar aquele desenho?
Comecei a decifrar, peça por peça, o legado deixado pelo mapa. A xícara. Poderia ser a antiga cafeteria que ele frequentava com a mãe, Dona Carmela, nas manhãs de feira? O traço até o coração. Seria uma lembrança de um amor antigo, um desengano, um arrependimento? A linha era grossa em alguns pontos, fina em outros, como se marcando um caminho tortuoso.
Visitei a cafeteria. O cheiro de café torrado e pão fresco ainda pairava no ar, mas o balcão de mármore arranhado e os azulejos desbotados contavam outra história, uma de tempo e esquecimento. A dona atual, Dona Geni, uma senhora de bochechas rosadas e sorriso fácil, não se lembrava de Seu Osvaldo, mas mencionou um antigo dono, um Seu Antenor, que tinha um “olho clínico” para as pessoas e guardava algumas “coisas de valor” em seu escritório nos fundos.
O escritório era pequeno, abarrotado de caixas empoeiradas e o cheiro adocicado de papel velho. Entre pilhas de documentos e fotografias amareladas, encontrei uma caixa de madeira entalhada. Dentro, não havia ouro ou joias, mas cartas. Cartas de amor, escritas numa caligrafia elegante e cheias de promessas sussurradas. Eram de um homem, um tal “Júlio”, para uma mulher chamada “Estela”.
Estela. O nome ecoou em mim como um raio. Minha avó, a mãe de Seu Osvaldo, se chamava Estela. Mas ele nunca falava dela. As cartas revelavam um amor proibido, um romance de juventude que, por algum motivo, precisou ser enterrado. As datas coincidiam com os anos em que minha avó estava casada com meu avô, um homem rude e ciumento.
O traço na palma da mão de meu pai começava a fazer sentido. A xícara, a cafeteria, o caminho até o coração. Era o mapa de um segredo, de um amor que ele, talvez, tenha guardado como herança de sua mãe. O enigma não era sobre um tesouro material, mas sobre um tesouro de sentimentos, sobre a complexidade das relações humanas, sobre os silêncios que moldam uma vida inteira.
Uma das últimas cartas continha um pequeno bilhete dobrado, escrito no verso de uma foto antiga. Na foto, minha avó, jovem e radiante, sorria ao lado de um homem que não era meu avô. O bilhete dizia: “Seja feliz, minha estrela. Guardo seu amor no meu coração, um tesouro que ninguém mais poderá roubar.” Era de Júlio.
Seu Osvaldo, com seu mapa mudo na palma da mão, não me deixou um enigma para resolver, mas um convite para sentir. Para entender que as vidas que vivemos são tecidas com fios invisíveis de amores, perdas e escolhas. E que, por vezes, o maior tesouro não está enterrado em algum lugar, mas guardado no silêncio, à espera de ser descoberto. Olhei para a minha própria mão, uma palma lisa e sem marcas, e me perguntei quais enigmas eu carregaria, quais segredos eu deixaria como herança. A Mooca, com seus prédios baixos e suas histórias murmuradas, guardava mais mistérios do que eu imaginava. E a memória de Seu Osvaldo, com o mapa na palma, agora era um farol, guiando-me por um oceano de sentimentos que eu ainda estava aprendendo a navegar.
Por: Beatriz Almeida Vianna

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