O colecionador de objetos íntimos.
O Colecionador de Objetos Íntimos
O aroma de café coado e mofo de livros antigos pairava no ar do apartamento de Marcelo. Não era um mofo desagradável, mas aquele que emana de estantes abarrotadas, de pilhas de papel que guardam histórias. As janelas de venezianas de madeira, batendo suavemente com a brisa úmida do fim de tarde carioca, filtravam uma luz alaranjada que acariciava os objetos dispostos com esmero sobre as superfícies. Nada ali era supérfluo, cada peça possuía uma narrativa.
Marcelo, quarenta e poucos anos, a pele marcada pelo sol que ele tanto evitava em casa, movia-se com uma delicadeza quase reverente. Seus olhos, de um azul desbotado, fixavam-se em cada item: um botão de madrepérola solto de uma blusa, um fio de cabelo preso em um bilhete amarelado, um pequeno pedaço de tecido bordado à mão. Não eram relíquias de museu, mas fragmentos de vidas alheias, capturados em momentos de fragilidade ou intimidade.
Havia o lenço de seda com uma mancha tênue de batom vermelho, encontrado no banco de trás de um táxi esquecido. O par de brincos de prata, um deles sem o fecho, deixado em um vestiário após uma aula de dança de salão. Um carderno pequeno, com anotações rabiscadas de um diário íntimo, cujas páginas cheiravam a perfume floral, descoberto entre livros usados em uma feira da Urca. Cada objeto era um portal.
Ele não roubava, não invadia. Seus achados eram acidentes felizes, fruto de um olhar atento e de uma sensibilidade aguçada para o que os outros descartavam ou deixavam para trás. Para Marcelo, cada objeto carregava a energia do toque humano, a marca de uma emoção. Um suspiro contido, uma lágrima disfarçada, um sorriso despretensioso. Ele não os colecionava por fetiche, mas por uma necessidade profunda de sentir a universalidade da experiência humana, sua beleza efêmera e complexa.
Um dia, enquanto vasculhava uma caixa em um brechó em Santa Teresa, suas mãos encontraram um pequeno álbum de fotografias. As imagens em preto e branco revelavam um casal jovem, sorrindo em um passeio de barco, abraçados em frente a um casarão antigo. Um daqueles sorrisos, o da mulher, com um fio de cabelo rebelde caindo sobre a testa, o tocou profundamente. Em uma das últimas páginas, havia uma pequena flor seca, um beijo em papel.
Ele levou o álbum para casa. Naquela noite, sob a luz fraca de um abajur, Marcelo desdobrou a flor com o cuidado de um cirurgião. Ela se desfez em pó em suas mãos, levando consigo um perfume sutil, quase imperceptível. A fragilidade da flor parecia espelhar a fragilidade da memória, a transitoriedade dos momentos.
Na semana seguinte, ele voltou ao brechó. Perguntou sobre o álbum, sobre quem o havia deixado ali. A vendedora, uma senhora de cabelos grisalhos e olhar cansado, apenas deu de ombros. “Ah, essas coisas de gente que se muda, que abandona. Nem sei quem era.”
Marcelo sentiu um aperto no peito. Aquele casal, aqueles sorrisos, aquela flor… A história deles se perderia no tempo, diluída entre as centenas de outros fragmentos que ele guardava. Ele pegou outro álbum, este com fotos desbotadas de crianças brincando em uma praia. A emoção, no entanto, já não era a mesma. Havia uma melancolia diferente pairando sobre seus achados, uma consciência crescente da própria solidão.
Ao anoitecer, ele se sentou em sua poltrona favorita, cercado por seus objetos. O botão de madrepérola, o fio de cabelo, o pedaço de tecido. E agora, a lembrança da flor que se desfez. Ele fechou os olhos, sentindo o peso das histórias que carregava, e se perguntou se, ao colecionar os fragmentos íntimos dos outros, ele não estaria, na verdade, apenas acumulando vazios. Ou talvez, apenas adiando o momento de encontrar os seus próprios.
Por: Isabela Fernandes Couto

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