O Cinza em Nossas Veias

O Cinza em Nossas Veias

O aroma do café forte, o chiado inconfundível da cafeteira no fogão a gás, o tilintar das colheres de metal contra as xícaras de esmalte azul. Era assim que os dias de Dona Lúcia começavam, pontuados pelas cores vibrantes que ela insistia em manter. O tapete vermelho da entrada, o bule de cerâmica amarela, as flores sempre vivas – embora cada vez mais pálidas – no vaso de barro na janela. Ela dizia que era para espantar a tristeza.

Mas a tristeza, sorrateira, já andava pintando o mundo com seus próprios tons. Primeiro, foram as rosas. Não as do jardim de Dona Lúcia, que ela protegia com unhas e dentes, mas as de fora. As vermelhas, intensas, que adornavam os carros estacionados na rua de paralelepípedos, começaram a parecer desbotadas, como se tivessem passado anos sob um sol impiedoso. Depois, as laranjas das mangas maduras na feira do bairro. Uma a uma, foram perdendo seu brilho, adquirindo um tom ocre que lembrava poeira seca.

Ana, neta de Dona Lúcia, notou primeiro. Ana era uma artista, com os dedos eternamente manchados de tinta, com os olhos que enxergavam as nuances onde a maioria via apenas um borrão. Ela tentou pintar o pôr do sol que via da varanda de casa, um ritual sagrado para ela e sua avó. Mas o pincel não obedecia. O laranja vibrante, o vermelho flamejante, o roxo profundo… tudo se transformava em tons de cinza, um cinza triste, sem vida. Ela esfregou os olhos, pensando ser fadiga, excesso de trabalho. Mas o cinza persistia, teimoso.

“Vovó, o céu hoje está estranho”, disse ela, com a voz embargada.

Dona Lúcia, debruçada sobre a máquina de costura, apenas balançou a cabeça. “O céu é como sempre foi, minha filha. Você que está vendo com os olhos cansados.”

Mas Ana sabia. E as pessoas ao redor também começavam a perceber, mesmo que relutassem em admitir. O azul dos uniformes dos garis que varriam a rua, antes tão nítido, agora se misturava ao cinza do asfalto. O verde das folhagens das árvores, outrora promessa de sombra e frescor, parecia um tecido velho, gasto. A alegria das crianças brincando na praça, antes tão colorida em suas roupas e em seus gritos, agora soava abafada, descolorida.

Os dias se tornaram um prelúdio do crepúsculo. As conversas, antes animadas e repletas de adjetivos vívidos, agora eram monótonas, quase sussurradas. Os sorrisos, que antes iluminavam rostos como raios de sol, agora eram pálidos, desprovidos de seu calor usual. O mundo, antes um caleidoscópio de sensações, se transformava em uma aquarela diluída, onde as linhas se tornavam indistintas e os contrastes, meras lembranças.

Dona Lúcia, para defender seu espaço de cor, intensificou seus esforços. Comprou tintas de cores mais fortes, tecidos mais vibrantes. As flores em seu jardim eram regadas com uma devoção quase religiosa. Mas mesmo elas, protegidas e amadas, começavam a ceder. As pétalas vermelhas das rosas desbotavam para um rosa quase branco, os girassóis, antes um sol em miniatura, tornavam-se discos cinzentos com centros escuros.

Uma noite, Ana encontrou sua avó sentada na poltrona empoeirada, o tear de tricô parado nas mãos enrugadas. A única luz vinha da rua, um brilho fraco e amarelado que mal tocava as paredes descascadas. Os olhos de Dona Lúcia, antes tão vivos e cheios de histórias, pareciam perdidos em um mar de apatia.

“Vovó?”, chamou Ana, a voz sumindo no silêncio pesado.

Dona Lúcia virou-se lentamente. Seus lábios se moveram, mas nenhum som saiu. Ana se aproximou, pegou as mãos da avó. Estavam frias. E não era um frio comum, era o frio de quem sentiu a vida escorrer, não em sangue, mas em cor.

“Onde foram, vovó? Onde foram todas as cores?”, perguntou Ana, as lágrimas molhando o cinza que parecia invadir até o seu próprio rosto.

Dona Lúcia piscou, um movimento lento e cansado. Um fio de voz saiu, arranhando o silêncio.

“Elas não foram, querida. Elas… estão dentro. Mas o mundo lá fora… o mundo lá fora já não as sente mais.”

Ana olhou para a janela. A rua era um borrão de tons neutros. O céu, uma imensidão sem fim de branco opaco. A pergunta pairou no ar, sem resposta, ressoando na solidão crescente de um mundo que aprendia a viver sem cores, mas talvez, apenas talvez, aprendia a sentir de outra forma. Ou a deixar de sentir completamente.


Por: Isabela Fernandes Couto

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