O Cheiro de Jasmim e a Sombra Tênue
A noite em Vitória tinha o cheiro denso da maresia misturado com a doçura enjoada de jasmim em flor. Era um perfume que Clara, desde menina, associava à calma, à segurança. Agora, o jasmim parecia zombar dela, uma doce promessa em meio à podridão que se instalara em sua alma. Sentada no balanço enferrujado do quintal, o crepitar rítmico servia de metronomo para a contagem regressiva de sua existência.
Marco, seu marido, estava lá dentro. A porta do quarto, antes um portal para o aconchego, agora era uma muralha de silêncio que Clara temia transpor. Ele dormia. Ou fingia dormir. O ritual havia sido perfeito. A dose calculada, a desculpa ensaiada, a hora exata em que a sonolência venceria a última resistência. Tudo planejado com a precisão de um relojoeiro. Meses de observação, de ensaios mentais, de supressão de qualquer resquício de hesitação. O apartamento, impecável, sem impressões digitais onde não deveriam estar, sem falhas de segurança. O álibi, sólido como rocha. Ela estaria na casa da mãe, cuidando da tia enferma, um ato de devoção familiar que ninguém ousaria questionar.
Seu corpo, porém, traía a frieza calculada. As mãos tremiam, não de medo, mas de uma adrenalina doentia que a fazia vibrar. Uma gota de suor escorreu pela têmpora, beijando a pele salgada. O ventobrought um arrepio, e ela abraçou os braços, sentindo a textura áspera do algodão desbotado da sua camiseta. O canto de um grilo pontuava a noite, um som pequeno e persistente, como uma dúvida que se aninhava em seu peito.
Ela fechou os olhos, tentando evocar a imagem que a impulsionara a tudo aquilo: o sorriso condescendente de Marco, a indiferença em seus olhos quando ela falava de sonhos, a forma como ele descartara suas conquistas com um aceno de mão. A humilhação, ah, a humilhação era um veneno que corroía por dentro, dia após dia. E agora, o veneno estava prestes a ser neutralizado, ou assim ela acreditava.
Uma luz ténue atravessou a fresta da porta da cozinha. Marco estava acordado. Seu coração disparou, um tambor descontrolado contra as costelas. Ele não deveria estar acordado. A dose era forte, inquestionável. Ela se encolheu no balanço, a respiração suspensa, ouvindo passos lentos e hesitantes.
Os passos se aproximavam do quintal. Clara se levantou, a madeira rangendo sob seus pés. Queria correr, desaparecer na escuridão, mas suas pernas pareciam presas ao chão. Marco surgiu na penumbra, a silhueta esguia contra a claridade fraca. Ele não parecia furioso, nem assustado. Parecia… confuso.
“Clara?”, a voz dele era rouca, estranha. “Que horas são? Não consigo… dormir.”
Ele levou a mão à testa, como se procurasse orientação. Clara sentiu um nó na garganta. O plano se desfazia em sua mente, peça por peça. O veneno, a dose, o sono. Tudo tão cuidadosamente arquitetado.
“Eu… eu também não dormi direito”, ela conseguiu articular, a voz trêmula.
Marco deu um passo hesitante em sua direção. A luz da cozinha ainda iluminava parcialmente seu rosto. Ele parecia pálido, mais do que o normal. E então, Clara notou. Um detalhe minúsculo, ridículo, que se destacava na desolação daquela noite.
Na manga da camisa de Marco, bem perto do punho, havia um fio solto. Um fio de lã, de um tom verde musgo, que se projetava, fino e teimoso. Clara sabia de onde vinha aquele fio. Era do cachecol que ela havia feito para ele no último inverno, um presente que ele usara apenas uma vez, e que ela guardava numa gaveta com um aroma suave de lavanda. Ela não o via há meses.
Uma náusea forte a invadiu. A imagem de Marco vestindo o cachecol, aconchegado contra o frio, um gesto de afeto que ela havia desdenhado, voltou com força total. Aquele fio, ali, em sua manga. Como ele o pegara? E, mais importante, por que ele não o havia removido?
Marco, alheio à tormenta que se abatia sobre Clara, franziu a testa. “Você está bem? Parece… estranha.”
Clara não conseguia desviar o olhar do fio. Ele parecia gritar, um pequeno sinal de resistência em meio à sua tentativa de apagamento. Ela se lembrou de ter guardado o cachecol com um ramo de jasmim seco. Um aroma que ela havia escolhido para acompanhar o presente.
O cheiro de jasmim, que antes parecia zombar dela, agora se misturava a uma nova fragrância. Uma fragrância sutil, que emanava de Marco. Uma fragrância fraca, quase imperceptível, que ela reconheceu com um arrepio gelado. Era o mesmo perfume adocicado e enjoativo das flores do seu quintal.
Marco, percebendo o olhar fixo dela, seguiu sua linha de visão. Seus olhos pousaram no fio verde na sua manga. Ele olhou para ele, como se o visse pela primeira vez.
“Ah, isso…”, ele murmurou, e então levantou a mão, puxando o fio. Ele se soltou com um leve estalo. Marco tentou disfarçar o gesto, mas Clara viu a hesitação em seus movimentos, a forma como ele desviou o olhar.
O crime perfeito havia ruído. Não por uma falha na lógica, não por um erro de cálculo, mas por um fio solto de lã verde musgo e um cheiro de jasmim no ar. Clara olhou para Marco, para a sombra tênue que ele projetava sob a luz fraca da cozinha, e pela primeira vez, ela não sabia mais quem era o predador e quem era a presa. O silêncio se estendeu, pesado e carregado de perguntas não ditas, de verdades ocultas, e a noite em Vitória, com seu perfume de jasmim, parecia ter se tornado um lugar de eternas possibilidades.
Por: João Pedro Silveira

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