O Cheiro de Giz e Laranja Amarga
O sol batia implacável no telhado de zinco da Escola Municipal Lúcia Marques, criando um calor abafado que se misturava ao cheiro familiar de giz, suor de criança e um leve aroma de desinfetante que mal conseguia mascarar a realidade. Dona Helena, seus cabelos grisalhos presos num coque frouxo, alisava a página amarelada de um livro didático, a testa franzida em concentração. Era início de tarde, e a sala, apinhada de crianças com rostos curiosos e alguns sonolentos, exalava a esperança contida de quem aprende.
Ela conhecia cada um daqueles rostos. Conhecia o olhar assustado de Joãozinho, que morava com a avó doente e a tia que trabalhava de sol a sol na feira. Conhecia o sorriso largo de Maria Eduarda, a mais esperta da turma, cujos pais só conseguiam mandá-la para a escola porque ela aprendia rápido e ajudava em casa nos poucos momentos livres. E conhecia a teimosia de Pedro, o inquieto, que parecia ter mais energia para correr pela rua do que para sentar nas carteiras rasgadas.
Dona Helena era a engrenagem que mantinha a pequena máquina funcionando. Ela trazia o material que podia, comprava giz extra com o próprio salário, organizava mutirões para pintar a escola e, às vezes, tirava um pedaço do próprio almoço para dividir com quem chegava de estômago vazio. Sua vida era ali, naquele barraco de alvenaria no alto da favela da Rocinha, onde o acesso à educação era uma linha tênue entre a vontade e a impossibilidade.
Os formulários, porém, eram seu inimigo silencioso. Pilhas de papéis com carimbos e assinaturas que prometiam melhorias, materiais, transporte, alimentação. Ela os preenchia com a esperança de que, desta vez, algo chegaria. Formulários para livros novos, para a reforma do telhado gotejante, para a merenda de qualidade que só aparecia nos dias de visita da inspeção.
Havia o projeto para a horta comunitária, que ela idealizou com as crianças, um pedaço de terra esquecido nos fundos da escola que poderia, com um pouco de incentivo, fornecer verduras frescas e ensinar sobre a natureza. Passou meses correndo atrás de sementes, de ferramentas, de aprovação. Recebeu um “aguarde”, um “em análise”, um “falta documentação”. A terra continuava ali, estéril, pisoteada por quem passava.
Certa vez, uma nova coordenadora chegou, cheia de discursos sobre eficiência e resultados. Dona Helena, com a voz embargada pela emoção, explicou as necessidades urgentes. A coordenadora anotou tudo, polida, e saiu prometendo providências. Dias depois, chegaram caixas de material de escritório: canetas brilhantes, cadernos com capas ilustradas, uma impressora novinha. Material que, para Helena, parecia um deboche. Onde estavam as chuteiras para o time de futebol improvisado? Onde estava o reforço para a merenda? Onde estava a atenção para os olhos famintos que ela via todos os dias?
A frustração, por vezes, era um nó na garganta que ela engolia junto com o café amargo. Via os pais, esgotados pela labuta diária, sem tempo ou recursos para lutar por seus filhos. Via a desesperança que pairava no ar em dias chuvosos, quando o barro se tornava um mar intransponível e a escola, um sonho distante.
Uma tarde, depois de mais uma reunião infrutífera sobre a falta de verbas para o transporte escolar – um problema que impedia muitos de chegarem –, Dona Helena caminhava de volta para casa. O sol já se punha, pintando o céu de tons alaranjados e roxos que contrastavam com a poeira das vielas. Ao longe, ouvia-se o som de um violão e vozes cantando uma melodia melancólica.
Ela parou em frente a uma casa modesta, onde um grupo de crianças brincava com uma bola descalça. Viu o olhar atento de uma menina, sentada na soleira da porta, observando a brincadeira com um caderno nas mãos, rabiscando algo com um pedaço de carvão. O coração de Dona Helena apertou.
Não era a burocracia que iria mudar aquele cenário. Não eram os formulários preenchidos que trariam o futuro. Era o cheiro do giz na lousa, o brilho nos olhos de quem aprende, a chama que ela, teimosamente, alimentava a cada dia.
Ela respirou fundo, o cheiro da terra molhada e a promessa de um novo dia no ar. Amanhã, o sol voltaria a bater no telhado, e ela estaria lá. Com o giz, com o livro, com a esperança renovada. E talvez, só talvez, com mais um pedaço de laranja amarga para dividir.
Por: Isabela Fernandes Couto

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