O Cheiro da Poeira Sagrada

O Cheiro da Poeira Sagrada

O ar da Biblioteca Municipal de São Gonçalo cheirava a mofo, café frio e o doce e fraco perfume de lavanda que Dona Cecília insistia em espalhar pelos corredores em potinhos de vidro, uma tentativa fútil de mascarar a deterioração. O sol da tarde, filtrado por janelas empoeiradas e gradeadas, pintava listras douradas sobre as prateleiras abarrotadas. Para a maioria, era um espaço esquecido, um eco de uma era passada onde o papel reinava soberano. Para Cecília, era um santuário.

Ela era a guardiã. Ou, como gostava de se pensar, a alquimista dos tempos modernos, transmutando o abandono em resistência. Seus dedos longos e finos, marcados pelas picadas de agulhas de bordado que usava para remendar páginas rasgadas, deslizavam com reverência sobre as lombadas desbotadas. Havia ali tesouros que o mundo parecia ter esquecido: edições primeiras de autores esquecidos, tratados de botânica com ilustrações botânicas que ainda exalavam o cheiro de tinta fresca em um mundo de telas brilhantes, romances em edições esgotadas que sussurravam histórias de amor e dor com uma intimidade que nenhum algoritmo jamais replicaria.

O dilema de Cecília era o silêncio. Não o silêncio reconfortante da leitura concentrada, mas o silêncio da ausência. Os estudantes vinham buscar as novidades digitais, os mais velhos se reuniam para aulas de artesanato na sala anexa, e os livros, esses seres silenciosos, acumulavam poeira e solidão. O orçamento, sempre escasso, mal cobria o papel higiênico para o banheiro, quanto mais a restauração de um livro com a lombada prestes a ceder ou a digitalização de manuscritos únicos.

Um dia, um jovem com cabelos desalinhados e um olhar que oscilava entre a curiosidade e o desprezo entrou na biblioteca. Chamava-se Lucas. Ele procurava informações sobre as primeiras migrações para a região, um trabalho escolar que ele parecia ter deixado para a última hora. Cecília o guiou, não para os computadores lentos e travados, mas para uma seção esquecida no fundo, onde o aroma de papel envelhecido era mais pungente.

“Aqui”, disse ela, sua voz um sussurro rouco, extraído de anos de prática do silêncio. Ela pegou um volume pesado, com capa de couro rachada, que exalava um cheiro terroso, como terra molhada após a chuva. “O diário de um português que veio em 1808. Ele descreve a chegada, as dificuldades, o medo e a esperança. Uma perspectiva que os livros de história que você vai encontrar na internet não podem te dar.”

Lucas pegou o livro com relutância. O peso, a textura áspera do papel, o cheiro peculiar, tudo era estranho para ele. Mas quando abriu, as letras escritas à mão, com uma caligrafia elegante e irregular, capturaram sua atenção. Ele leu sobre uma terra desconhecida, sobre o desespero de deixar tudo para trás, sobre a promessa de um futuro incerto. As palavras ganharam vida, e Lucas viu a realidade crua daquele tempo, não como uma narrativa distante, mas como um suspiro coletivo.

Nas semanas seguintes, Lucas retornou. Não mais com a pressa desinteressada de um aluno, mas com a avidez de um arqueólogo descobrindo um artefato. Ele passou horas absorto nos diários, nas cartas antigas, nos jornais amarelados. Descobriu a história viva, os detalhes que moldaram a cidade que ele conhecia, os sonhos e as angústias de pessoas que, como ele, um dia caminharam por aquelas ruas.

Cecília o observava de longe, um sorriso discreto brincando em seus lábios. Havia ali um lampejo de esperança.

Uma tarde, Lucas encontrou Cecília tentando reorganizar uma pilha de livros sobre arquitetura local que ameaçava desabar. Um dos volumes, com uma capa descolada, estava prestes a se desfazer.

“Dona Cecília”, disse ele, com uma urgência que surpreendeu a bibliotecária. “Eu… eu posso ajudar. Meu avô era marceneiro. Ele sabe consertar couro, encadernar…”

Cecília olhou para ele, surpresa. Ela viu não um jovem apenas interessado em história, mas alguém que começava a entender o valor intrínseco daqueles objetos, a sacralidade do conhecimento que eles carregavam.

“Sabe, Lucas”, disse ela, sua voz carregada de uma emoção que ela raramente permitia transparecer, “a ignorância é uma doença contagiosa. Ela apaga memórias, sufoca a criatividade, nos torna frágeis. E esses livros”, ela acariciou a capa do livro em suas mãos, sentindo a rugosidade do tempo, “são nossos anticorpos.”

Ela olhou para a janela, onde as luzes da cidade começavam a piscar, e para as prateleiras sombreadas, repletas de histórias esperando para serem redescobertas. Lucas, com as mãos agora ávidas por aprender, esperava por suas instruções. E o cheiro de mofo e lavanda, por um breve instante, pareceu misturar-se a algo mais: um aroma de futuro, construído sobre os alicerces do passado, um passado que aBibliotecária do Crepúsculo se recusava a deixar morrer. O que viria a seguir, ninguém sabia, mas o sussurro das páginas começava a ganhar novas vozes.


Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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