O Canto Sombrio da Serra do Cipó

O Canto Sombrio da Serra do Cipó

A noite da lua minguante pairava sobre a Serra do Cipó como um véu úmido, carregado do cheiro de terra molhada e do perfume adocicado e ligeiramente amargo das flores de ipê-amarelo, que teimavam em desabrochar fora de época. No pequeno adro da igreja centenária de São João, as tochas lançavam sombras dançantes sobre os rostos concentrados dos poucos fiéis reunidos. Um círculo de sal grosso, traçado com esmero sobre a pedra batida, separava o altar improvisado, adornado com ramos de alecrim e um pequeno vaso de barro com água de mina, do resto do espaço. Era a noite em que Dona Lourdes, a matriarca da comunidade e guardiã dos saberes antigos, realizaria o ritual de purificação da terra, um antigo costume que remontava a tempos imemoriais, transmitido oralmente de geração em geração.

No centro do círculo, a jovem Clara, de dezesseis anos, aguardava. Seus olhos, da cor do café forte, refletiam uma mistura de apreensão e resignação. Para ela, o ritual era mais uma tradição que um ato de fé, um peso herdado de uma família que sempre viveu à margem, entre o respeito e o temor dos vizinhos. Dona Lourdes, com seus oitenta anos e o andar cambaleante, mas a voz ainda firme, iniciou as palavras em latim macarrônico, um idioma que mais parecia ter sido moldado pelo vento das montanhas do que por livros. O incenso de mirra e benjoim subia em volutas densas, envolvendo a todos num torpor aromático.

O pão ázimo, moldado por mãos calejadas, repousava sobre uma folha de bananeira. Clara sentia o suor escorrer pelas têmporas, não pelo calor, mas pela estranha vibração que emanava do solo. As cigarras, em silêncio incomum, pareciam prenunciar algo.

Foi então que aconteceu.

Um zumbido grave, diferente de qualquer som conhecido na região, preencheu o ar. Não era o ronco de um carro, nem o rugido distante de um animal. Era um som que parecia vir de dentro da terra e do céu ao mesmo tempo, crescendo em intensidade até se tornar ensurdecedor. As tochas oscilaram violentamente, projetando sombras fantasmagóricas que distorciam as feições dos presentes. Um clarão azulado, intenso e penetrante, desceu do céu noturno, concentrando-se diretamente sobre o círculo de sal.

Um grito de espanto ecoou. Clara, que estava prestes a dar o primeiro passo em direção ao altar, foi engolida por aquela luz. Não houve som de carne rasgando, nem de ossos quebrando. Apenas um rápido desvanecer, como se a própria realidade tivesse engolido sua presença. Um instante depois, a luz cessou, o zumbido se desfez, deixando para trás apenas o silêncio denso e os corações disparados.

Onde Clara estava, agora havia apenas um pequeno círculo de grama chamuscada, exalando um odor metálico, acre. O vaso de barro com a água de mina estava tombado, a água se espalhando lentamente pela pedra. Dona Lourdes, paralisada, sua mão ainda erguida em meio a um gesto de bênção interrompida, balbuciou palavras incompreensíveis, um misto de medo e incredulidade. Os fiéis se agruparam, sussurrando, apontando para o vazio. Seus rostos, antes marcados pela devoção e pela expectativa, agora exibiam um terror primitivo.

Ninguém ousou se aproximar do local. O ritual, outrora um elo sagrado com o passado, agora se transformara em um portal para o desconhecido. A noite fria da Serra do Cipó guardaria para sempre o segredo do desaparecimento de Clara, deixando para trás apenas um vazio e a aterradora pergunta: quem, ou o quê, ousaria interromper um ritual tão antigo, para levar uma alma inocente para onde os cantos das cigarras não mais alcançariam? A esperança de encontrá-la se perderia no eco silencioso de um céu que, naquela noite, revelou uma face desconhecida e aterradora.


Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *