O Bibliotecário de Gritos
A poeira pairava no ar como um véu translúcido, dançando nos feixes de sol que esgueiravam pelas janelas altas e sujas da biblioteca. O cheiro era uma mistura familiar e reconfortante: papel velho, um leve toque de mofo e o aroma adocicado do desinfetante barato que Dona Lurdes usava uma vez por semana, num esforço quase heroico para combater o tempo. Ali, entre prateleiras que se estendiam como árvores antigas, morava Elias.
Elias não era um bibliotecário comum. Ninguém jamais o vira sorrir, tampouco se queixar. Seus dias eram medidos pelo ranger das escadas de madeira, pelo farfalhar das páginas viradas com hesitação e pelo silêncio pesado que emanava de sua figura esguia, sempre vestida de cores neutras, como se quisesse se fundir às sombras. Seus olhos, de um azul desbotado, pareciam carregar o peso de todas as histórias não contadas, de todos os segredos sussurrados e, principalmente, dos gritos engolidos.
A biblioteca pública do bairro era um refúgio para os esquecidos. Um lugar onde a senhora Maria vinha se perder em romances melosos para esquecer o marido que bebia demais; onde o jovem Tiago, com os cabelos despenteados e os ombros curvados pela insegurança, buscava conhecimento para um futuro que ainda não se desenhava; onde a pequena Sofia, com seus olhos curiosos e um único dente de leite visível, desvendava os mistérios dos contos de fadas. E todos, sem exceção, sentiam a presença quieta de Elias.
Ele era o guardião silencioso, o depositário de algo mais do que livros. Ninguém sabia ao certo, mas um pressentimento pairava no ar, um murmúrio coletivo que Elias parecia compreender. Ele não precisava de palavras para escutar. Bastava um olhar fixo em alguém, um gesto sutil com as mãos longas e finas, para que a aflição se dissipasse um pouco. Elias ouvia os gritos. Os gritos que ninguém mais podia ouvir.
Um dia, a garota nova apareceu. Chama-se Clara, cabelos cor de fogo e um olhar que desafiava o mundo. Ela não procurava histórias para fugir, mas para entender. Aos quinze anos, Clara carregava um turbilhão de dores, um grito mudo que a consumia por dentro. Ela notou Elias imediatamente, não pela sua inércia, mas pela sua intensidade silenciosa.
Ela começou a frequentar a biblioteca diariamente. Não lia muito. Ficava sentada à mesa mais distante, os dedos tamborilando impacientes no tampo arranhado, os olhos fixos nas prateleiras, mas parecia ver além delas. Elias a observava de longe, o leve franzir da testa, a forma como ela apertava os lábios finos. Ele via o grito dela ecoando em seus próprios ouvidos, um som agudo e lancinante que só ele parecia captar.
Um final de tarde chuvoso, o barulho da água batendo nas vidraças era quase ensurdecedor. Clara, sentada sozinha, deixou um livro cair no chão com um baque seco. Não era um gesto acidental. Seus ombros tremeram. Elias aproximou-se, sem fazer barulho, como uma sombra se materializando. Ele se ajoelhou, pegou o livro caído e, em vez de colocá-lo de volta na mesa, estendeu-o para Clara. Mas não era o livro que ele segurava.
Na palma da mão dele repousava um pequeno objeto de metal polido, a forma indistinta sob a luz fraca, emitindo um brilho suave e quase hipnótico. Clara hesitou, seus olhos fixos no objeto. Elias inclinou a cabeça ligeiramente. Foi um convite mudo.
Com os dedos trêmulos, Clara estendeu a mão. Ao tocar no objeto, uma onda de calor percorreu seu corpo. As lágrimas que ela segurava rolavam soltas pelo rosto, mas não eram mais de desespero. Eram um rio de liberação. Elias permaneceu ali, quieto, oferecendo seu silêncio como um cobertor. Ele sabia que o grito dela, finalmente, encontrava um eco. Um eco que não a julgava, mas a acolhia.
Quando Clara finalmente levantou os olhos, Elias já havia voltado para trás das suas prateleiras. Ela apertou o objeto em sua mão, sentindo o calor que emanava dele. Olhou para Elias, que estava novamente absorto em seus livros, mas ela sentiu uma conexão. Uma compreensão silenciosa. O que era aquele objeto? Um amuleto? Uma chave?
O bibliotecário de gritos não oferecia palavras, mas alívio. E Clara, segurando aquele pequeno fragmento de silêncio polido, soube que o grito dentro dela, embora ainda presente, já não era tão solitário. E talvez, apenas talvez, a busca por respostas tivesse acabado de começar. Ela olhou para as prateleiras novamente, não mais com a dor que a consumia, mas com uma nova curiosidade, um desejo de decifrar os segredos guardados ali, e os que Elias parecia carregar em seus olhos desbotados.
Por: Beatriz Almeida Vianna

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