O alquimista da dor.
O Alquimista da Dor
O cheiro de incenso barato paira no ar abafado do pequeno cômodo, misturando-se ao odor pungente de ervas secas. Em meio a pilhas de livros empoeirados e potes de vidro de procedência duvidosa, Elias, com seus 68 anos e olhos que guardam mais tempestades do que serenidades, manipula com dedos ágeis um pilão e uma pedra de mármore. Não são ouro que ele busca transformar, mas o chumbo da dor em algo, talvez, mais leve.
“O corpo fala, sabe?”, sussurra ele, a voz rouca como o ranger de um portão enferrujado. “A gente só precisa aprender a escutar. A dor é um sinal. Um grito de socorro da alma, muitas vezes.” Elias não é médico, não tem diploma pendurado na parede mofada de sua casa simples, no coração da periferia de São Paulo. Ele se autodenomina um “curandeiro da alma”, mas para os que o procuram, em desespero, ele é o “alquimista da dor”.
Seu “laboratório” é uma improvisada saleta nos fundos de sua casa. Ali, a luz entra escassa por uma janela pequena, iluminando um mosaico de vida sofrida. As estantes guardam não apenas livros antigos sobre botânica e metafísica, mas também os relatos silenciosos de incontáveis vidas. São caixas de remédios vazias, cartões de visita esquecidos, pequenos objetos pessoais deixados por aqueles que buscaram alívio em suas mãos calejadas.
Dona Maria, 55 anos, chegou a Elias há seis meses. Vítima de um assalto violento que a deixou com sequelas físicas e um medo paralisante, ela passava noites em claro, o corpo em constante sobressalto. “Os médicos diziam que era psicológico. Me entupiram de remédios que me deixavam mole, sem vontade de viver. Aqui, ele não me deu pílula. Me deu um chá. Me ensinou a respirar. Me falou que o corpo guarda a memória do que a gente não fala.” Hoje, Dona Maria anda com uma leveza surpreendente. O sorriso, antes apagado, volta a brilhar em seu rosto. “Ele não me curou da noite para o dia. Ele me ajudou a encontrar o meu próprio caminho para a cura. É diferente, sabe? Mais real.”
O contexto social é brutal. As filas nos postos de saúde se arrastam, a falta de acesso à saúde mental é uma ferida aberta na sociedade. Em muitos bairros como o de Elias, o “alquimista” surge como uma esperança quando o sistema formal falha, ou quando a dor parece transcender o físico. Ele não cobra consulta, vive de doações, muitas vezes aceitando o que as pessoas podem oferecer: um quilo de arroz, um pouco de feijão, um abraço sincero.
“Tem gente que vem aqui com o corpo quebrado e a alma em pedaços”, confessa Elias, enquanto prepara uma infusão com folhas de boldo e um toque de mel. “Eu não faço milagre. Eu tento entender a raiz do problema. A dor, muitas vezes, vem de um lugar que a gente nem imagina.” Ele fala sobre o peso das perdas, a solidão, a falta de perspectiva, a violência que assola a cidade. A dor física, ele acredita, é apenas a ponta do iceberg.
Seu trabalho é envolto em mistério e ceticismo. Para alguns, um charlatão. Para outros, um anjo disfarçado. A verdade, como sempre, reside em algum lugar no meio, no terreno pantanoso da fé e do desespero. Ele não se importa com rótulos. Seu propósito é claro: aliviar o sofrimento, trazer um pouco de luz para as sombras que assolam a vida de tantos.
Ao anoitecer, Elias se senta em sua varanda, observando as luzes da cidade que se acendem, cada uma delas representando uma história, uma dor, uma esperança. Ele sabe que seu trabalho é uma gota no oceano, mas para aqueles que encontram nele um porto seguro, essa gota faz toda a diferença.
Mas enquanto as preces de gratidão ecoam em seu pequeno refúgio, uma pergunta permanece no ar, tão sutil quanto o aroma do incenso: se a dor é um sinal, qual o recado que o alquimista da dor, em sua quietude, está tentando nos passar sobre o que realmente nos aflige? E o que estamos dispostos a transformar em nós mesmos para, finalmente, curar nossas feridas mais profundas?
Por: Silas Thorne, o Cronista do Insólito

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