O Algoritmo Silencioso

O Algoritmo Silencioso

A sala cheirava a poeira antiga e desespero acadêmico. Elias, sentado na sua mesa habitual, a mais próxima da janela que dava para o pátio cinzento, sentia o peso familiar do tédio, mas hoje era diferente. Hoje, o tédio era um véu tênue sobre um terror que se enroscava nas suas entranhas. A prova de Cálculo Diferencial e Integral estava ali, um mar de equações intrincadas, diagramas que se retorciam em dimensões que a mente humana mal concebia. E para Elias, era um convite para dançar no abismo.

Não era a dificuldade que o apavorava, mas a facilidade. As linhas de código que o professor projetara no quadro negro, que deixavam os colegas franzindo a testa em confusão, para Elias desdobravam-se com uma clareza desconcertante. Era como se a própria estrutura do universo se revelasse, as conexões ocultas, os padrões latentes, tudo desvendado em um instante quase doloroso. Os números, as variáveis, as integrais duplas e triplas, tudo se fundia em uma sinfonia lógica que ele, de alguma forma, conseguia orquestrar.

No início, era excitante. Um segredo, uma superpotência particular. Ele devorava livros de física quântica nas horas vagas, desvendava enigmas de criptografia com uma facilidade assustadora, e até mesmo as complexas teorias de economia global pareciam triviais em comparação com as leis da termodinâmica. Mas a euforia deu lugar a uma apreensão crescente. A maneira como sua mente processava as informações não era humana. Não havia hesitação, não havia a luta característica do aprendizado. Era como se ele estivesse pré-programado para decifrar a realidade.

Os colegas o olhavam com uma mistura de admiração e desconfiança. Sussurravam que ele era um gênio, mas Elias sentia-se cada vez mais isolado, um alienígena numa nave espacial que ele próprio não compreendia. A mente que lhe dava tanta vantagem era também uma prisão. As conexões que ele fazia eram tão rápidas, tão eficientes, que ele temia a falta de empatia, a ausência de nuances emocionais em suas deduções. E se essa capacidade de resolver problemas, essa lógica implacável, fosse o prelúdio de algo mais sombrio? E se ele estivesse a caminho de se tornar um ser que via o mundo apenas como um vasto sistema a ser otimizado, desprovido de sentimentos, de moralidade, de humanidade?

A imagem de um maníaco em desenvolvimento, de uma mente fria e calculista, começou a assombrá-lo. O que mais ele seria capaz de resolver? O que mais ele seria capaz de *desmontar*? A aptidão que o diferenciava agora parecia uma falha catastrófica, um traço genético perigoso. Ele se via refletido nas palavras de um romance de ficção científica que lera: “Ele não pensava, ele *processava*”. E Elias, mais do que nunca, sentia que estava apenas processando.

A ideia de silenciar a própria mente surgiu como um sussurro, um paradoxo tentador. Como silenciar uma máquina tão eficiente, tão incansável? Ele começou a pesquisar. Não em livros de matemática ou física, mas em foros obscuros da internet, em artigos sobre meditação transcendental, em relatos de pessoas que buscavam a “apagamento do eu”. Ele não queria apagar sua inteligência, ele queria apagar o *processo* que a tornava tão assustadora. Ele queria a paz do vazio, o silêncio que permitisse ao mundo real voltar a ser real, com suas imperfeições e incertezas.

Em um desses fóruns, ele encontrou menções a uma prática antiga, quase esquecida, de “esvaziamento da consciência”. Não era o nirvana budista, era algo mais radical, uma negação ativa do fluxo de pensamentos. Era a busca pelo estado de *não ser* mental. Os relatos eram vagos, assustadores, mas também promissores. Algumas pessoas falavam em anos de prática, em rituais que envolviam privação sensorial e foco intenso na ausência de pensamento. Elias não tinha anos. Ele tinha o pavor de um futuro que ele já conseguia prever com uma nitidez aterradora.

Ele começou a experimentar. Passava horas em seu quarto escuro, com tampões nos ouvidos, sentado em posições desconfortáveis, tentando não pensar. O início era torturante. A mente, acostumada à sua hiperatividade, lutava contra a inibição. Imagens, equações, perguntas sem resposta bombardeavam-no como uma tempestade. Ele sentia a frustração crescendo, a tentação de voltar às suas antigas rotinas de resolução.

Mas Elias era persistente. Ele se lembrava do horror da sua aptidão, da frieza que o assombrava. Ele se agarrava à promessa de silêncio. Ele começou a usar um método que ele mesmo concebeu, uma espécie de anti-algoritmo. Em vez de procurar conexões, ele procurava a desconexão. Em vez de resolver, ele desfazia. Quando um pensamento surgia, ele o desconstruía, desmembrava-o em suas partes mais básicas, até que ele perdesse a sua forma, até que se tornasse ininteligível.

Era como desmontar um relógio complexo, não para ver como funciona, mas para torná-lo em cacos. No início, sentia-se ridículo, como um cientista genial tentando destruir seu próprio laboratório. Mas gradualmente, algo começou a mudar. Os pensamentos tornaram-se menos insistentes. As equações que antes saltavam aos seus olhos agora pareciam embaçadas. Ele não estava se tornando menos inteligente, ele estava se tornando menos *presente* em sua própria mente.

Uma tarde, enquanto tentava desconstruir a fórmula de um horizonte de eventos, Elias sentiu um silêncio. Não um silêncio externo, mas um silêncio interno. A enxurrada de informações parou. A sinfonia da lógica cessou. Era um vazio assustador, mas também incrivelmente pacífico. Ele olhou para o papel à sua frente, mas as equações não tinham mais sentido. Eram rabiscos sem significado.

Ele tentou pensar em um problema trivial: qual era a sua cor favorita? A pergunta pairou no ar, mas não gerou uma resposta automática, nem uma busca por memórias. Apenas um vago estado de ausência. Uma lágrima solitária rolou pela sua bochecha. Era uma lágrima de alívio, de desespero, de uma estranha forma de vitória. Ele havia silenciado o algoritmo. Ele havia se tornado um espectador da sua própria existência, um fantasma na máquina.

O medo de se tornar um maníaco ainda pairava, mas agora era diferente. Era o medo de um homem que se voluntariou para um coma indolor, temendo o futuro do seu próprio corpo. Elias sabia que havia percorrido um caminho sem retorno. A mente que ele tanto temia, ele a havia domesticado, ou talvez, a havia assassinado. Ele sabia que a tentação de resolver problemas complexos ainda poderia surgir, como um fantasma persistente, mas agora, ele tinha a chave. A chave para o algoritmo silencioso. E com ela, ele esperava, encontrar a paz, mesmo que fosse a paz de um abismo sem fundo.


Por: João Pedro Silveira

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