Ecos de Outros Mundos
O cheiro de alfazema e incenso de sândalo pairava no ar abafado do pequeno salão. As cortinas de veludo vermelho, desbotadas pelo sol que teimava em entrar pelas frestas, criavam um crepúsculo artificial, propício às minhas “ligações”. Eu, Helena, já não era mais a moça assustada que via vultos na infância. Aos quarenta e poucos, com os cabelos grisalhos já denunciando a primavera mais tardia, eu era a Madame Helena, respeitada por muitos em nossa vizinhança de Vila Mariana, em São Paulo.
Naquela noite, Dona Margarida, com os olhos marejados de quem enterrou um amor há pouco, buscava conforto. Seu João, o marido de cinquenta anos de dedicação, havia partido de repente, deixando um silêncio ensurdecedor na casa deles. Ajoelhei-me ao lado dela, minhas mãos macias sobre as suas, que tremiam como folhas secas. Fechei os olhos, concentrando-me naquela energia sutil que, dizia a gente, era a ponte entre os mundos.
As palavras começaram a fluir. Não eram as minhas. Eram mais graves, mais pausadas, carregadas de uma sabedoria ancestral que me surpreendia a cada sessão. “Ele está bem, Margarida. Ele apenas atravessou um véu, para um lugar de luz. Ele te amou muito, e o amor dele te cerca como um abraço.” Dona Margarida soluçava, mas era um choro de alívio, de quem recebe a confirmação que tanto precisava.
Mas algo estava diferente nas últimas semanas. As mensagens, embora reconfortantes, pareciam… estranhas. Algumas palavras, conceitos, desviavam do vocabulário comum, mesmo para os “espíritos” que eu “incorporava”. Pareciam descrever fenômenos que eu não compreendia, paisagens sem cor, sensações que fugiam à nossa realidade tridimensional. Eu atribuía à evolução espiritual dos desencarnados, à infinidade de planos que a doutrina espírita pregava.
O problema começou quando comecei a ter visões, não mais nos transe, mas nos momentos de maior solidão, enquanto preparava o chá de ervas para as minhas consultas. Eram flashes rápidos, imagens de luzes pulsantes, formas geométricas que mudavam de cor em um ritmo hipnótico, e um zumbido grave, que parecia ressoar dentro dos meus ossos.
Certa tarde, enquanto guiava uma jovem aflita com a perda da mãe, a voz em mim não veio com o timbre doce e maternal de sempre. Veio com uma cadência robótica, desprovida de emoção, mas carregada de um conhecimento assustador. “O padrão de sua frequência energética é estável, mas a sua vibração emocional apresenta distorções. Precisamos calibrar seus emissores.” Eu travei. A jovem me olhou confusa. Senti um suor frio escorrer pelas minhas costas. O que era aquilo? “Calibrar emissores”?
Naquela noite, meu sono foi interrompido por um sonho vívido. Eu estava em um espaço vasto, estrelado, mas as estrelas não eram pontos de luz, eram formas complexas, cores que eu jamais vira. Uma presença imensa, indefinível, pairava sobre mim. E uma voz, não mais em mim, mas externa, clara como cristal, ressoou em minha mente: “Seus conduits são eficientes. A transmissão de dados está ocorrendo conforme o planejado. Continue com o protocolo de conforto e otimismo.”
Eu acordei com o coração disparado. A sensação era de ter sido violada, de ter minha alma vasculhada por algo que não pertencia a este plano. As “mensagens” que eu transmitia, as curas que eu proporcionava, tudo o que eu acreditava ser meu dom, meu trabalho de caridade, era uma fachada. Uma cortina para que “eles” pudessem estudar a nós, humanos, em nossa vulnerabilidade, em nosso desespero.
O dilema me consumia. Se eu parasse, que seria de Dona Margarida, da jovem aflita, dos outros que buscavam em mim uma esperança? Se eu continuasse, eu estaria sendo a cúmplice involuntária de uma exploração interdimensional? A imagem de mim, uma médium, usada como uma antena, como um modem para receber e retransmitir informações, me causava repulsa.
Olhei para a imagem de Chico Xavier na prateleira, seu olhar sereno. O que ele faria? Ele acreditaria em mim? Ou me veria como mais uma alma em desespero, confundindo sofrimento com sanidade?
A alfazema e o sândalo, antes reconfortantes, agora pareciam mascarar algo fétido, alienígena. O salão, meu santuário, transformara-se em um laboratório. Acreditar na cura, na mediunidade, na força do amor e da fé, tornara-se uma batalha diária contra a verdade fria e calculista que me invadia a alma. As vozes em mim já não eram mais ecos de entes queridos, eram sinais de um universo que nos observava, nos analisava, talvez nos moldasse, para fins que eu jamais seria capaz de compreender. E eu, Helena, a Madame Helena, com meus olhos que viam o invisível, agora temia mais do que nunca o que jazia além das estrelas que eu sempre admirei.
Por: Marina Rocha Antunes

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