As Sombras de Um Olhar

As Sombras de Um Olhar

O cheiro de café fresco, misturado à umidade do orvalho que ainda se agarrava às folhas do pequeno quintal, era o perfume da manhã de Clara. Uma manhã como tantas outras, até que a campainha tocou com a insistência nervosa de quem traz uma tempestade. Era Lúcia, o rosto um mapa de desespero, os olhos marejados e vermelhos como se tivessem chorado um rio.

“Clara… o André… ele está…” A voz dela falhou, um soluço estrangulado.

Clara sentiu o chão fugir sob seus pés. André. Aquele que, há meses, se tornara o centro gravitacional de sua existência, o sol que iluminava seus dias, mas que, nos últimos tempos, parecia cada vez mais ofuscado por uma névoa que ela não conseguia dissipar. A obsessão era um monstro insidioso, que se alimentava de olhares furtivos, de conversas sussurradas ao telefone, de fantasias que floresciam na solidão das noites.

Lúcia, a esposa de André, a quem Clara conhecia vagamente, as feições sempre serenas, o sorriso contido, agora se desmanchava diante dela. E o motivo era, de alguma forma, previsível. A obsessão de Clara, antes um segredo guardado a sete chaves, um fogo brando que aquecia seu coração, transformara-se em um incêndio que consumia tudo ao redor.

A polícia chegou, os uniformes azuis destoando da pacata rua arborizada. As sirenes, antes um som distante, agora batiam forte no peito de Clara, em sintonia com o tamborilar descontrolado de seu próprio coração. Ela observava o movimento na casa vizinha, as luzes piscando, os vultos apressados. Um burburinho de vozes, de perguntas, de lamentos.

André.

A imagem dele surgiu em sua mente, o sorriso largo que a desarmava, o jeito de inclinar a cabeça quando ouvia atentamente, o toque que parecia incendiar sua pele. Mas havia algo mais, algo que a consumia. A insegurança. A dúvida. Seria ele dela? Era possível que o amor que sentia, tão intenso, tão avassalador, fosse unilateral? A dúvida, essa erva daninha traiçoeira, brotara em seu peito e se espalhara como uma doença, corroendo sua paz, distorcendo sua visão da realidade.

Ela se lembrava das vezes em que ele demonstrava um carinho especial, um olhar mais demorado, um gesto mais íntimo. E se agarrava a esses fragmentos como a um náufrago se agarra a um pedaço de madeira. Mas a mente obsessiva, essa máquina implacável de tortura, criava cenários alternativos, sussurrando venenos em seus ouvidos. E se tudo fosse apenas uma ilusão? E se ele a estivesse enganando? E se houvesse outra? A outra. A sombra que pairava sobre seus pensamentos, a fantasma que a assombrava.

Lúcia, entre soluços, contava a história. Uma discussão. Agressão. Um momento de desespero. Clara ouvia, a respiração presa na garganta, o corpo paralisado. A realidade era um soco no estômago, mais brutal do que qualquer fantasia. O crime passional. Uma expressão fria, técnica, para descrever a tempestade de emoções que levara a um ato irreversível.

Ela sabia. Em algum lugar, no fundo de sua alma, ela sabia que a semente desse desastre havia sido plantada por ela mesma. Na imensidão de seu desejo, na ânsia de posse, na incapacidade de aceitar a possibilidade da perda. A obsessão, essa paixão distorcida, a cegara para a fragilidade da vida, para a complexidade dos sentimentos humanos.

Ao fim da tarde, o silêncio voltou a pairar sobre a rua, um silêncio pesado, carregado de dor. As luzes da casa vizinha se apagaram, mas as sombras, essas sim, jamais se dissipariam. Clara permaneceu na varanda, o café esfriando na caneca, o olhar perdido no horizonte. O que ela havia feito? O que ela se tornara?

A porta da casa de Lúcia se abriu novamente. Era ela, os olhos ainda vermelhos, mas com uma serenidade sombria. Ela olhou para Clara, um olhar que parecia atravessá-la. Não havia acusação, apenas uma resignação profunda, um conhecimento silencioso do abismo em que ambas haviam caído.

Clara sentiu um calafrio. E se a obsessão não fosse apenas dela? E se, de alguma forma, a necessidade de André, o amor que ela acreditava ser tão puro, tivesse também sua parcela de culpa? E se a linha entre o amor e a possessão, entre a paixão e o ódio, fosse mais tênue do que se imaginava?

O aroma do café agora parecia amargo, o orvalho já seco, a manhã que chegara anunciando um novo dia, agora trazia consigo a marca indelével de um fim. E Clara, sentada na varanda, observando as sombras que se alongavam, sabia que a sua própria sombra, a sombra do seu olhar obsessivo, a acompanharia para sempre. A questão que pairava no ar, insidiosa como o cheiro de café no fim da tarde, era: quem, afinal, era o verdadeiro culpado? E o que mais as sombras guardavam?


Por: Marina Rocha Antunes

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