As Raízes do Sol Quebrado
A fresta da janela do quarto compartilhado espremia o brilho laranja da tarde em finas tiras de poeira dançante. Para Ana, o quarto era um eterno crepúsculo, mesmo quando o sol rugia lá fora, quente e impiedoso sobre os telhados de zinco do Beco do Fundo. Tinha doze anos e a lembrança vívida da voz que a chamava “minha florzinha” se esvanecia como o cheiro do incenso que Dona Clara acendia antes de sumir no mundo, deixando-a aos cuidados de tios que a viam como mais uma boca para alimentar, uma tarefa incômoda. A única coisa que realmente a aquecia era o sol batendo no chão de terra batida, onde ela gostava de desenhar formas invisíveis com o dedo.
A casa dos tios, sempre escura e com cheiro de mofo e tristeza, parecia querer sugar a pouca luz que ela conseguia capturar. O trabalho de limpar, lavar louça até as mãos ficarem em carne viva, e a atenção zero, eram a rotina. Os dias passavam iguais, marcados pelos passos pesados do tio no assoalho, o estalar das tábuas que sempre a faziam encolher, e o murmúrio constante da tia sobre o quanto Ana era um fardo.
Um dia, enquanto remexia em um monte de caixas velhas no sótão empoeirado – uma tarefa que os tios lhe designavam como castigo por algum erro não especificado –, algo chamou sua atenção. Um baú de madeira escura, com fechos de metal enferrujado, escondido sob um monte de panos desbotados. Com o coração batendo como um tambor desgovernado, ela forçou a tampa.
O aroma forte de couro velho e metal frio subiu, misturado ao cheiro de naftalina. Lá dentro, sobre um forro de veludo puído, repousavam objetos que pareciam pertencer a outro tempo. Moedas antigas, de um dourado opaco, algumas joias discretas mas cintilantes, e um diário com a capa gasta. As páginas amareladas revelaram a caligrafia elegante de uma mulher chamada Sofia. Era a história de uma vida que parecia um conto de fadas: paixões, viagens, e um tesouro escondido, legado de uma avó que a ensinou o valor de ser livre e generosa. Sofia, assim como Ana, havia perdido os pais cedo, mas não as esperanças.
Ana leu cada linha, sentindo as palavras de Sofia ecoarem em sua alma. O tesouro não era apenas ouro e joias; era a prova de que a resiliência podia florescer em terrenos áridos, que o amor podia ser construído mesmo na solidão. A decisão veio como um raio de sol rompendo as nuvens: ela usaria aquilo. Não para si, para fugir daquele beco, mas para construir algo que nenhum tio ou tia jamais lhe dariam: um lugar para chamar de lar, para outros como ela.
Com o diário e uma pequena parte do tesouro escondida em um saco de estopa, Ana esperou a noite cair. O medo era um nó na garganta, mas a força que Sofia lhe inspirara era maior. Saiu sorrateiramente, o barulho da porta rangendo soando como um trovão. O ar da noite, úmido e carregado com o cheiro de jasmim e esgoto, a envolveu. Andou pelas ruas desertas, passando por casarões com janelas escuras e barracos que pareciam respirar na penumbra.
O destino era a antiga fábrica de sabão abandonada, um esqueleto de tijolos no final da rua principal, com janelas quebradas que pareciam olhos vazios. Era ali que alguns dos garotos e meninas que ela via pelas ruas, com os olhos assustados e os estômagos roncando, costumavam se abrigar. Ela sabia que o caminho seria árduo. Os tios a procurariam, a raiva deles seria um vendaval. Havia os “homens do aluguel”, os que cobravam para “proteger” os mais fracos, que se tornariam seus inimigos naturais. E havia a desconfiança do mundo, que a veria como mais uma criança pedindo, não como alguém que tinha algo a oferecer.
A primeira etapa foi convencer os outros. Com a voz ainda infantil, mas firme, ela compartilhou a história de Sofia, mostrou algumas das moedas que brilhavam sob a luz fraca de um lampião improvisado. A fome e o medo dos outros eram palpáveis, mas a esperança, aquela semente plantada por Sofia, começou a brotar. Ela não prometeu riquezas, mas sim um refúgio, um lugar onde a fome seria saciada e a dignidade, respeitada.
Os primeiros meses foram uma batalha constante. Ana, com a ajuda de outros meninos e meninas mais velhos, limpava a fábrica, quebrava barreiras de concreto, criava divisórias improvisadas com lonas e pedaços de madeira. A cada moeda trocada por comida, a cada tijolo recolocado, era uma vitória contra a exploração. Os tios tentaram alcançá-la, mas o medo do que ela poderia revelar, ou talvez um resquício de algo esquecido, os fez recuar.
Os “homens do aluguel”, liderados por um sujeito corpulento chamado Seu Valdemar, com um sorriso que mais parecia um rosnado, apareceram. Exigiram uma “taxa” para “garantir a segurança” dos recém-chegados. Ana, lembrando-se das palavras de Sofia sobre não se curvar, recusou. A briga que se seguiu foi desigual, mas a união dos órfãos, surpreendendo os agressores com uma ferocidade nascida da necessidade, os repeliu. O corpo de Ana, magro, mas ágil, aprendeu a se defender. O medo se transformava em coragem, a fragilidade em força.
Um dia, enquanto supervisionava a pintura de um muro interno com cores vivas – um presente de um pintor de rua que se compadeceu da causa –, Ana viu Seu Valdemar e seus capangas se aproximando novamente. O clima estava tenso. Mas, desta vez, eles não estavam sozinhos. Ao lado deles, um homem de terno escuro, com um rosto marcado pela idade e pela arrogância, observava o local com um desprezo velado. Ele era o Dr. Ernesto Tavares, um empresário influente que havia negociado muitos dos bens deixados por Sofia, sem nunca ter imaginado a magnitude do que existia.
“O que é isso, garota?”, rosnou o Dr. Tavares, apontando para o pequeno exército de crianças que agora a cercavam, com os olhos fixos no homem de terno. “Um bando de vira-latas criando uma pocilga? Isso é terreno privado!”
Ana respirou fundo, o cheiro de tinta e suor no ar. Viu o olhar ganancioso nos olhos do Dr. Tavares, o mesmo olhar que ela via nos rostos dos que a exploravam. Mas agora, ela não estava sozinha. Ela tinha raízes.
“Este é o nosso lar, senhor”, respondeu Ana, com a voz clara, cada palavra ecoando no silêncio que se instalou. “Um lar que vocês tentaram nos negar.” Ela ergueu uma das moedas antigas, que agora usava como um amuleto. “E este tesouro”, ela disse, olhando para o Dr. Tavares, “não pertence a quem o esconde, mas a quem o faz florescer.”
O Dr. Tavares a encarou, um lampejo de reconhecimento, ou talvez apenas irritação, cruzando seus olhos. Ele conhecia o nome de Sofia. A brisa leve levantou a poeira do chão de terra batida, trazendo consigo o perfume adocicado das flores que Ana havia plantado na entrada da fábrica. O sol, que antes parecia um espelho quebrado, agora irradiava uma luz forte e promissora sobre aquele lugar. O que aconteceria a seguir, nenhum deles sabia ao certo. Mas uma coisa era inegável: o Beco do Fundo tinha uma nova força, uma força que o dinheiro não podia comprar e que a exploração não conseguiria mais silenciar.
Por: Beatriz Almeida Vianna

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