A Teia do Silêncio
O cheiro de café coado, inconfundível em sua pungência amarga e reconfortante, era a trilha sonora das manhãs de Dona Luzia. Naquele agosto particularmente seco, o aroma pairava mais denso no ar da cozinha modesta, as janelas da rua de terra batida abertas para um sol que prometia castigar. Aos 72 anos, Dona Luzia tinha o tempo marcado pelo ritmo lento do sol e pela cadência familiar dos dias. A vida, para ela, era uma tapeçaria de fios que se teciam, alguns vibrantes de memória, outros desbotados pela ausência.
O neto, Rafael, 17 anos, era a cor mais nova na trama. Um turbilhão de hormônios e silêncios, ele dividia o tempo entre o celular e as noites longas de insônia que Dona Luzia percebia pelo ranger dos móveis no andar de cima. Ele morava com ela desde que a mãe, sua filha única, partira para tentar a vida em São Paulo, há cinco anos. As promessas de retorno, antes fartas, agora se escasseavam em breves mensagens de voz, sempre apressadas.
Naquele dia, Dona Luzia sentiu um arrepio. Não era o frio da manhã, que já dissipava o orvalho das roseiras do quintal. Era um frio diferente, um toque tênue, quase imperceptível, como se filamentos finíssimos se estendessem pelo ar e a roçassem. Ela franziu a testa, o olhar vagando pelos cantos da sala, pelas molduras empoeiradas das fotos antigas. Nada. Apenas a poeira dançando nos feixes de luz que invadiam o cômodo.
O toque gelado voltou mais tarde, enquanto dobrada a roupa lavada. Um fio invisível, um roçar fantasmagórico na pele do braço. Parecia vir de lugar nenhum e de todos os lugares ao mesmo tempo. Uma sensação de estar envolta, enredada por algo que não podia ver, não podia tocar de fato. Era como se teias de aranha, invisíveis e minúsculas, estivessem se formando em seu redor, prenunciando uma captura silenciosa.
Rafael desceu para o café, o cabelo desalinhado, os olhos fundos. Ele mal a cumprimentou, pegou o pão com requeijão e se jogou no sofá. O celular, sua extensão natural, já estava em suas mãos. Dona Luzia observou-o, o peito apertado. Via nele o mesmo silêncio que a envolvia, mas nele era um silêncio de quem se fecha, não de quem se resigna.
“Rafael, meu filho”, ela tentou, a voz suave, “você dormiu bem?”
Ele murmurou um “sim”, sem desviar os olhos da tela. O toque gelado, agora, parecia emanar dele, ou talvez fosse apenas a sua própria apreensão a criar a sensação.
Nos dias que se seguiram, o toque se intensificou. Vinha quando ela estava sozinha no quintal, cuidando das poucas plantas que ainda lhe restavam. Vinha quando servia o jantar, um leve formigar nas pontas dos dedos. Ela começou a desviar os olhos constantemente, a buscar a origem do incômodo, a esquadrinhar os espaços vazios. Era a solidão se manifestando em sensações físicas? Era a preocupação com Rafael se materializando? Ou algo mais antigo, mais profundo, algo que sua avó dizia que eram os fios do destino, a teia que nos prende sem que percebamos?
Certa tarde, enquanto Rafael estava na rua com os amigos, ela decidiu arrumar o sótão, um lugar que evitava há anos, acumulador de memórias e de poeira. A luz que entrava pela pequena janela era escassa, revelando formas difusas e sombras dançantes. E então, ela viu. Não eram teias de aranha, não exatamente. Eram finos fios de poeira suspensa no ar, aglomerados em formas etéreas, que pareciam se esticar e contrair com o movimento do ar. Filamentos que, ao serem tocados pela luz, ganhavam uma translucidez fantasmagórica.
Ela estendeu a mão, cautelosamente. A poeira, finíssima, se agarrou à sua pele. A sensação era a mesma do toque gelado, a mesma fragilidade, a mesma invisibilidade. E, de repente, uma clareza dolorosa a atingiu. Aquelas teias eram a representação do silêncio, da ausência, do tempo que passa, das vidas que se afastam. Eram as teias da saudade, da incerteza, do que não se diz, do que não se pode controlar.
Olhou para o corredor que levava ao quarto de Rafael. O ar ali parecia mais pesado, mais denso, como se os fios invisíveis se concentrassem. Ela sabia que a vida de seu neto também estava sendo tecida por esses fios, por anseios que ele não compartilhava, por medos que ele escondia por trás da indiferença forjada. A teia gelada não era um prenúncio de algo terrível, mas a própria essência da fragilidade humana, da conexão que, por vezes, se estica ao ponto de parecer quebrar, mas que insiste em se manter em um delicado equilíbrio, invisível aos olhos, mas sentido na alma.
Dona Luzia desceu do sótão, o ar ainda crepitando em sua pele. Não sentiu mais medo. Sentiu, sim, a responsabilidade sutil de quem, mesmo nas teias, ainda pode mover um fio. A noite caiu, e a casa se encheu do silêncio que ela agora compreendia. Rafael voltou, e o olhar que trocou com a avó, por um instante fugaz, parecia conter um fragmento de algo que ele também sentia, mas não sabia nomear. O cheiro de café, agora com um leve toque de alecrim que Dona Luzia adicionou, pairava no ar, um fio quente a tentar tecer um novo sentido naquele emaranhado silencioso.
Por: Beatriz Almeida Vianna

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