A Tabuleta da Madrugada
O cheiro de café recém-passado se misturava ao aroma mofado dos livros empilhados na sala de estar de Dona Elvira. A luz fraca do abajur dourado pintava sombras alongadas nos móveis antigos, onde o tempo parecia ter parado. No centro da mesa de centro desgastada, um jogo de tabuleiro de aparência inocente repousava. Era “O Portal”, um presente de aniversário que Clara, sua neta, havia encontrado em um antiquário empoeirado no Centro. Clara, com seus 17 anos e a inquietude típica da idade, já o havia tentado convencer de jogar inúmeras vezes.
“Vó, é só um jogo! Dizem que é super legal, mexe com a imaginação”, dizia Clara, os olhos castanhos brilhando de excitação. Dona Elvira, com seus 70 anos, o corpo curvado pela osteoporose e a mente ainda em luto pela perda do marido há dois anos, resistia. Para ela, cada objeto guardava memórias, e essa tabuleta, com seu tabuleiro de madeira escura entalhado com símbolos indecifráveis, parecia carregar um peso além do físico. As peças, figuras de metal opaco, pareciam frias ao toque, diferentes dos bonequinhos coloridos de seus jogos de infância.
Mas Clara insistiu. Naquela noite fria de julho, com o vento uivando lá fora como um lamento, a neta a cercou, o apelo nos olhos tão sincero que Dona Elvira cedeu. “Só uma partida, Clara. Depois vou dormir.”
Sentaram-se, o silêncio da madrugada quebrado apenas pelo tique-taque insistente do relógio da sala. As regras eram vagas, confusas, escritas em um papel amarelado. Falavam sobre “invocações”, “portões” e “espíritos guias”. Dona Elvira sentiu um arrepio percorrer sua espinha ao ler a palavra “outros”.
Começaram. As peças se moviam lentamente. Clara, com a naturalidade de quem desvendava enigmas, respondia às perguntas do manual, tirava cartas com frases enigmáticas. Dona Elvira, hesitante, sentia a atmosfera da sala mudar. O ar ficou mais denso, as sombras pareciam mais profundas. Um leve murmúrio, como um sussurro distante, parecia permear o ambiente, mas ela atribuía ao vento.
De repente, uma das peças, que Clara havia posicionado em um espaço marcado com um olho estilizado, tremeu. Um tremor sutil, imperceptível para quem não estivesse observando atentamente. Clara riu, achando que era a velha mesa desregulada. Mas Dona Elvira viu. E sentiu. Uma frieza que não vinha da noite. Uma presença que se instalou no canto mais escuro da sala, onde o sofá azul empoeirado repousava.
Clara, alheia, prosseguiu, a voz um pouco mais baixa. A última carta que tirou dizia: “O que você mais ama e mais teme se funde.” Ela olhou para a avó, um sorriso tímido no rosto. “Acho que é você, vó.” Dona Elvira não respondeu. Seus olhos estavam fixos no espaço vazio ao lado de Clara. Ali, uma forma tênue, translúcida, começava a se delinear. Um vulto cinzento, sutil, que lembrava vagamente a silhueta de seu falecido marido, João.
O coração de Dona Elvira disparou. O murmúrio se intensificou, transformando-se em um coro de vozes inaudíveis, mas que ressoavam em sua alma. O cheiro de café deu lugar a um odor metálico, como ferro enferrujado, que Dona Elvira reconheceu: era o cheiro do vestiário da fábrica onde João trabalhava.
“Vó?”, Clara chamou, a voz embargada pelo medo. Ela finalmente percebeu. A frieza, a mudança na atmosfera, o olhar fixo da avó. O vulto cinzento agora era mais nítido, pairando atrás de Clara, o contorno de uma mão estendida em sua direção.
Dona Elvira sentiu uma força irresistível a puxar para frente. Ela não sabia se era curiosidade, saudade ou terror. Estendeu a mão, que tremia violentamente, em direção à forma. A peça de Clara no tabuleiro, a que representava o “Portão Aberto”, brilhou fracamente.
“Não! Vó!”, Clara gritou, levantando-se abruptamente.
A mão de Dona Elvira tocou a névoa fria. Uma corrente elétrica percorreu seu corpo. A sala se encheu de um silêncio ensurdecedor. Clara observou, paralisada, enquanto a forma cinzenta se abraçava a sua avó, envolvendo-a em sua eterealidade. As luzes da casa piscaram. O vento lá fora parou de uivar, substituído por um silêncio sepulcral.
Quando as luzes voltaram ao normal, a sala estava como antes. A tabuleta do jogo, as peças, o café morno. Apenas Dona Elvira não estava mais ali. O lugar onde ela estava sentada estava vazio. Clara olhou para o jogo. A peça do “Portão Aberto” estava no centro da mesa, emitindo um brilho quase imperceptível. E, no tabuleiro, ao lado do olho estilizado, uma nova marca havia surgido, como uma pegada fantasma, que não estava lá antes. Clara sentiu um arrepio na espinha. A tabuleta parecia vibrar suavemente, um convite silencioso para mais um jogo, para mais uma jornada ao que jaz além. Ela olhou para a porta da sala, para as sombras que se adensavam, e uma pergunta ecoou em sua mente: para onde Dona Elvira havia ido? E, mais importante, ela poderia trazer sua avó de volta? Ou seria ela mesma a próxima a atravessar o portal? O jogo aguardava, a madruga ainda era longa.
Por: Marina Rocha Antunes

Deixe um comentário