A Sombra Invisível no Cérebro de Clara
O cheiro de café velho e a umidade persistente do ventilador de teto que rangia em um ritmo hipnótico eram as companhias de Elias naquela noite. Na penumbra do laboratório improvisado no porão da casa, em São Paulo, ele se debruçava sobre o microscópio. A luz azulada da lâmpada destacava as estruturas delicadas do microrganismo que ele, outrora, esperava ser a cura para a amnésia. Um fio de cabelo grisalho teimava em cair sobre seus óculos. Clara, sua esposa, dormia no andar de cima, e o silêncio da casa era um bálsamo para a mente febril de Elias, sempre obcecada com seus experimentos.
Ele batizou a criatura de *Mnemosyne*, em homenagem à titânide grega da memória. Era um parasita microscópico, um aglomerado de proteínas complexas e DNA modificado. A teoria era que ele se alojaria em áreas específicas do cérebro, estimulando a produção de neurotransmissores e “reconstruindo” memórias danificadas. Uma promessa doce, um sonho de desfazer os estragos do tempo e da doença.
Mas algo estava errado. Os testes em animais haviam mostrado resultados… imprevisíveis. Um rato que esquecia o medo de predadores, outro que repetia comportamentos aleatórios. Elias, em seu afã de aperfeiçoamento, havia introduzido uma nova cepa. E foi naquela noite chuvosa, com o som distante de uma sirene rasgando o ar úmido, que ele cometeu o erro fatal. Um pequeno derramamento. Uma luva furada. Um instante de distração.
Dias depois, Clara começou a agir de forma estranha. Pequenas falhas, que Elias atribuía ao estresse do trabalho. Ela esquecia onde colocava as chaves, repetia frases. Nada alarmante, pensou ele. Até que, em uma tarde de domingo, enquanto assistiam a um filme antigo que adoravam, ela virou para ele com um olhar vazio.
“Quem é você?”, perguntou, com a voz embargada.
O mundo de Elias desmoronou. Não era apenas a amnésia que ele temia. Era a *seleção*. O *Mnemosyne* não estava destruindo memórias; estava, sutilmente, reescrevendo-as.
Os dias seguintes foram um pesadelo de negação e desespero. Elias tentava desesperadamente reverter o que havia feito, mas o parasita era mais astuto do que ele imaginava. Ele se adaptava, se camuflava. Clara, em sua confusão, começou a acreditar em novas narrativas. Em um momento, ela falava sobre a infância feliz com seus pais, lembranças que Elias sabia serem inventadas. Em outro, olhava para as fotos de casamento com um estranho misto de confusão e ternura, como se reconhecesse o homem na imagem, mas não a história que ele representava.
O dilema de Elias era torturante. Ele havia criado o parasita para restaurar a memória, mas agora ele a corrompia. Revelar a verdade significaria mergulhar Clara em um caos ainda maior, confrontá-la com a perda de si mesma. Mas mantê-la em uma teia de falsas lembranças era uma crueldade pior.
Certa noite, enquanto Elias trabalhava febrilmente em seu laboratório, tentando encontrar uma contramedida, Clara desceu as escadas. Em suas mãos, um pequeno caderno de capa gasta.
“Elias”, ela disse, com uma serenidade perturbadora. “Eu estava pensando. Talvez… talvez seja melhor assim.”
Elias ergueu os olhos, o coração batendo descompassado.
“O quê, Clara?”
Ela sorriu, um sorriso frágil, mas genuíno. “Esquecer as coisas que doem. Deixar o que me faz mal para trás. Se é isso que esse… *coisa* faz, talvez ele esteja me ajudando.” Ela abriu o caderno. “Eu escrevo coisas aqui. Novas coisas. Coisas que fazem sentido agora.”
Elias a observou, sentindo um nó na garganta. Ele via a paz em seus olhos, uma paz que ele mesmo havia roubado e agora, ironicamente, ela encontrava em sua ausência. Ele olhou para os tubos de ensaio, para a cultura do *Mnemosyne* brilhando fracamente em seu frasco. Tinha ele o direito de apagar essa nova realidade, essa nova Clara, por mais artificial que fosse? Ou seria ele o único a carregar o peso da verdade, vendo a pessoa que amava viver em um mundo que ele, sem querer, havia construído para ela? A chuva continuava a cair lá fora, lavando as ruas de São Paulo, mas incapaz de limpar a sujeira que ele sentia em sua alma. Clara fechou o caderno, guardou-o em um bolso de seu roupão e, com um último olhar para ele, voltou a subir as escadas, deixando Elias sozinho com o silêncio e o rangido do ventilador. A sombra invisível no cérebro de Clara, agora, parecia ter um contorno mais nítido na mente de Elias.
Por: Isabela Fernandes Couto

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