A Raiz que Resiste

A Raiz que Resiste

O cheiro da terra molhada, com seu toque úmido e promessa de fartura, era o perfume que envolvia Maria Cecília. Uma fragrância familiar, tecida com as lembranças do pai, do avô, de todas as gerações que ali haviam fincado suas raízes, assim como ela. A pequena propriedade, um pedaço generoso de cerrado fértil, era seu santuário, a extensão de sua própria alma. As mãos calejadas, marcadas pelo sol e pela lida, acariciavam a casca áspera de um pequizeiro centenário, testemunha silenciosa de seu apego.

Do outro lado da porteira, o mundo avançava em concreto e aço. A “AgroGlobal S.A.”, com seus prédios espelhados que ofuscavam o azul do céu, prometia progresso, empregos, um futuro “moderno”. Mas Maria Cecília via além dos panfletos coloridos e das promessas vazias. Via a sombra de um futuro cinzento, onde o suor que brotava da terra seria substituído pelo barulho das máquinas e o aroma do orvalho pela fumaça dos escapamentos.

A pressão começou sutil, como um vento que levanta poeira fina. Cartas protocoladas, ofertas tentadoras que aumentavam a cada visita, sempre acompanhadas por um sorriso cordial demais, um aperto de mão que parecia querer apertar algo mais do que apenas um acordo. O engenheiro agrónomo da AgroGlobal, um rapaz de nome Ricardo, com olhos inquietos e um discurso afiado sobre “otimização de recursos” e “desenvolvimento sustentável”, era o mensageiro da ganância. Ele falava em números, em hectares, em projeções de lucro. Maria Cecília falava em sementes, em ciclos da lua, em vida.

“Dona Cecília”, Ricardo insistiu numa tarde abafada, o suor escorrendo em sua testa, “essa terra pode render muito mais. Imagine usinas de energia solar, centros de distribuição… a gente cuida de tudo, a senhora só recebe.”

Ela o encarou, os olhos castanhos firmes como as raízes de seus ipês. “E o que eu faço com dinheiro quando o chão não me dá mais o pão, meu filho? Quando o ar fica pesado e o canto dos pássaros é abafado pelo motor?”

As tentativas se tornaram mais incisivas. Notificações de embargo para uma suposta irregularidade ambiental, reclamações de vizinhos que, pressionados ou seduzidos pela empresa, começaram a olhar para sua propriedade com um misto de inveja e receio. A solidão apertava. Os amigos, muitos já haviam vendido suas terras por valores que pareciam astronómicos na época, agora a olhavam com pena ou evitavam seu olhar. O filho, que morava na cidade grande e só aparecia nas festas de fim de ano, dizia para ela aceitar, que era “a coisa certa a fazer”, “pensar no futuro”. Mas o futuro que ele via não era o dela.

Uma noite, enquanto o luar pintava de prata as folhas das mangueiras, ela ouviu o barulho de um trator. Um arrepio percorreu sua espinha. Saíram do mato, rumo à sua plantação de milho. A velocidade com que a máquina avançava, derrubando as espiras com uma brutalidade desalmada, a deixou paralisada por um instante. Era um ataque. Um ataque direto.

Sem pensar, ela correu para o galpão, pegou a velha enxada que usara por tantos anos para capinar e a correu em direção ao barulho. O motorista, um jovem com o rosto escondido pelo capuz, parou, surpreso com a figura solitária que se opunha à máquina.

“Pare!”, gritou ela, a voz embargada pela adrenalina e pela fúria. “Pare agora!”

Ele hesitou, mas o capataz da AgroGlobal, um homem robusto e de poucas palavras, apareceu na lateral do trator, gritando ordens. Maria Cecília, sentindo a terra sob seus pés como uma extensão de seu próprio corpo, cravou a enxada no chão com toda a força. O barulho do motor diminuiu, depois parou.

Naquele momento, ela não era mais apenas Maria Cecília, a agricultora. Era a muralha. A personificação da terra que se recusava a ser subjugada. A noite continuou tensa, com a presença da polícia chamada pela empresa, interrogatórios, ameaças veladas. Mas algo havia mudado. A imagem daquela mulher solitária, desafiando o progresso com a arma ancestral do trabalho, começou a se espalhar.

Os dias que se seguiram foram um turbilhão. Notícias surgiram em rádios comunitárias, em redes sociais de pequenos grupos. Uma advogada de uma ONG ambientalista entrou em contato, oferecendo ajuda pro bono. Pequenos agricultores vizinhos, antes acovardados, começaram a lhe enviar mensagens de apoio, um prato de comida, um olhar cúmplice. Ricardo, o engenheiro, a procurou novamente, desta vez com um tom diferente. Havia uma sombra de dúvida em seus olhos. Ele não conseguia mais sustentar o discurso polido diante da resiliência crua que emanava dela.

A luta de Maria Cecília estava longe de acabar. A AgroGlobal não desistiria facilmente. Mas agora, ela não estava mais completamente sozinha. A raiz que se recusava a ceder havia fincado sua força não apenas na terra, mas também nos corações de outros. E no horizonte, entre o cerrado dourado e o céu cada vez mais poluído, pairava uma pergunta silenciosa: até onde a semente da resistência poderia se espalhar?


Por: Isabela Fernandes Couto

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