A memória que mata.
O Cheiro de Terra Molhada
A chuva fina batia no telhado de zinco, um ritmo constante que Dona Odete tentava ignorar. O cheiro de terra molhada, agridoce e familiar, invadia o quarto, misturando-se ao aroma de alfazema do travesseiro. Era um cheiro que trazia consigo mais do que lembranças; trazia o peso.
João, seu filho único, se fora há dez anos. Um acidente estúpido na estrada de terra que levava para a roça dos pais. Ela nunca perdoou aquele caminho, a poeira que subia em nuvens finas, a curva traiçoeira. Cada gota de chuva parecia lavar um pouco daquele dia, mas a memória, essa teimosa, se agarrava com a força de raízes antigas.
Na sala, a televisão transmitia o noticiário com vozes graves e distantes. Dona Odete, encolhida em sua poltrona de vime, mantinha os olhos fixos nas mãos que teciam um xale que nunca seria usado. Os fios de lã, em tons de azul céu que João tanto gostava, escorregavam entre seus dedos enrugados, um emaranhado de dias que não voltariam.
De repente, o toque da campainha fez seu coração disparar. Um arrepio percorreu sua espinha. Ninguém a visitava sem aviso. O carteiro, talvez? O padeiro com as broas de milho? Mas a urgência no som, a insistência, a fez levantar com passos hesitantes.
Na soleira, estava um jovem. Alto, magro, com os olhos que a lembraram um susto. Usava um boné de aba reta, desgastado, e um tênis desamarrado. Segurava um pequeno embrulho, empapado pela chuva.
“Senhora Odete?”, a voz era um sussurro rouco, cheio de uma hesitação que Dona Odete conhecia bem.
Ela não respondeu. Apenas observou o rosto dele, a testa franzida, a forma como ele evitava seu olhar. A semelhança era perturbadora. Aquele sorriso torto que João tinha, o jeito de inclinar a cabeça para o lado.
O jovem pigarreou. “Eu sou… eu sou o Daniel. Filhos do seu Eurico, lá da Vila Velha.”
Dona Odete apertou a porta, a madeira fria sob suas palmas. Vila Velha. Aquele nome. Aquele lugar.
“Eurico?”, a voz dela saiu embargada, um fio de fumaça escapando de um fogo adormecido.
Daniel assentiu, os olhos finalmente encontrando os dela. Havia uma tristeza profunda neles, uma dor que parecia espelhar a sua. “Meu pai… ele faleceu semana passada. E antes de ir, ele me pediu pra trazer isso. Pra senhora.”
Ele estendeu o embrulho. Era uma caixa pequena, de madeira escura, com entalhes toscos. Dona Odete demorou a pegá-la. A madeira estava fria, úmida.
Ao abrir, encontrou um relógio de bolso, prateado e gasto. Na tampa, um pequeno coração entalhado. E dentro, uma foto desbotada: um garoto de uns dez anos, sorrindo para a câmera, o mesmo sorriso torto, os mesmos olhos vivos. Era João, nos seus tempos de menino.
“Seu Eurico disse que o senhor era amigo do meu João”, Daniel continuou, a voz falhando. “E que ele… ele sentia muito.”
O cheiro de terra molhada parecia intensificar-se. Dona Odete fechou os olhos. Lembranças que ela tentava esquecer, enterrar fundo, voltavam com a força de um rio transbordando. O som do pneu cantando na lama, o grito que ela não conseguiu dar, o silêncio ensurdecedor depois.
Ela lembrou-se do menino Daniel, um garoto magricela que sempre olhava João com uma admiração quase reverente. João, que era o centro das atenções em qualquer roda, o rei da brincadeira, o dono daquele sorriso que iluminava o mundo.
E lembrou-se de Eurico, o homem quieto e trabalhador, vizinho distante, que sempre a cumprimentava com um aceno de cabeça e um olhar de compreensão silenciosa.
O relógio de bolso, agora em suas mãos, parecia pulsar com um ritmo próprio. Um ritmo de saudade, de culpa, de um segredo guardado a sete chaves.
“Ele… ele sentia muito por quê?”, Dona Odete finalmente perguntou, a voz rouca, o coração apertado em uma dor nova, diferente, que se somava às antigas.
Daniel hesitou, os olhos desviando novamente para o chão. A chuva lá fora diminuíra, mas o cheiro de terra molhada ainda pairava no ar, denso e pesado.
“O meu pai… ele era quem dirigia o carro”, Daniel disse, em um sussurro quase inaudível. “Naquele dia.”
O silêncio que se seguiu foi mais profundo que a própria noite. Dona Odete olhou para o relógio de bolso, para o sorriso do seu João, e então para o rosto pálido e assustado de Daniel. A memória que a matava não era apenas a perda. Era a compreensão, tardia, de que o caminho para a roça, aquela curva traiçoeira, aquele cheiro de terra molhada, guardava mais do que um acidente. Guardava uma verdade que ela, em seu luto cego, jamais imaginara. E que agora, diante daquele rapaz que carregava a dor de outro segredo, se abria como uma ferida aberta.
Por: Catarina de Assis Mendonça

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