A música de uma caixa de música que toca sozinha em um sótão.
A Caixa de Sombras
O cheiro de mofo e de poeira fina pairava no ar, denso como um abraço antigo. Dona Cecília, com seus oitenta e poucos anos e as mãos ainda ágeis, apesar das veias que pareciam rios em um mapa torto, subiu os degraus rangentes do sótão. Era o último remanescente da casa da Rua das Orquídeas, onde cada tábua de madeira guardava um eco de risadas e choros, de sussurros e despedidas. O apartamento novo, moderno e sem alma, a sufocava. A pandemia, que roubara seu marido, o Seu Jorge, deixara-a com um vazio que nem a companhia dos netos conseguia preencher por completo.
Ela buscava algo. Não sabia exatamente o quê. Talvez uma lembrança esquecida, um conforto que o tempo parecia ter desbotado. Seus olhos, já turvos, percorreram as pilhas de caixas, os móveis cobertos por lençóis fantasmagóricos. Foi então que, num canto esquecido, sob uma manta de tricô com um desenho de passarinhos que ela mesma fizera décadas atrás, avistou-a.
Era uma caixa de música de madeira escura, entalhada com delicadas arabescos. Parecia pequena, quase insignificante. Dona Cecília a pegou com cuidado. A madeira estava fria, mas um calor sutil emanava dela, como se guardasse um sol aprisionado. Ela a sacudiu levemente, esperando o barulho familiar de um mecanismo interno. Nada. Tentou abrir a tampa, mas estava emperrada. Frustrada, mas com uma pontada de curiosidade teimosa, ela a colocou sobre uma velha cômoda empoeirada.
Enquanto o sol da tarde entrava pelas janelas sujas, pintando o sótão com raios dourados, um som começou a ecoar. Era frágil, melancólico, uma melodia antiga que Dona Cecília não reconhecia de imediato. Vinha da caixa. Ela se aproximou, o coração disparado como um pássaro assustado. A caixa estava fechada. O som continuava, uma sequencia de notas delicadas que pareciam tecer fios invisíveis no ar pesado.
*Lá, mi, dó… sol, fá, ré…*
A música não era alta, mas penetrava em seus ouvidos, em sua alma. Era uma canção de ninar, mas com um tom de saudade que apertava o peito. Dona Cecília fechou os olhos. E, de repente, as imagens vieram. Um vestido de noiva, um balanço no quintal, a risada de uma criança que ela nunca tivera. Era a música de um tempo que se fora, mas que, de alguma forma, a caixa de música insistia em manter vivo.
Ela passou horas ali, sentada na poeira, ouvindo a melodia fantasma. A caixa não abria. Não tinha manivela aparente. Apenas tocava, em intervalos imprevisíveis, como um sopro do passado invadindo o presente. Ela pensou em Seu Jorge. Ele amava música. Colecionava discos de vinil. Teria sido dele? Uma lembrança que ele guardara para ela?
Naquela noite, Dona Cecília não dormiu direito. A melodia ainda ressoava em seus ouvidos, um murmúrio constante que a acompanhava. No dia seguinte, ela voltou ao sótão, não com a intenção de arrumar, mas com a ânsia de ouvir. A caixa tocou de novo. Desta vez, a melodia pareceu mais intensa, mais urgente. E Dona Cecília sentiu algo mais do que saudade. Sentiu uma presença.
Ela chamou a neta, a Clara, uma jovem estudante de música com cabelos tingidos de azul e um olhar curioso e gentil. Clara ficou cética, mas a insistência da avó a levou ao sótão. E ali, no silêncio da casa, ouviram a caixa.
“Vó, que coisa estranha”, disse Clara, fascinada e um pouco apreensiva. “É uma melodia bem antiga. Parece uma valsa incompleta.”
Clara tentou mexer na caixa, analisar os entalhes, mas nada indicava um mecanismo para ligar ou desligar a música. E então, num momento de silêncio, quando o som parou abruptamente, Dona Cecília viu. Um dos arabescos, quase imperceptível, parecia se mover levemente. Era uma pequena flor, que se retraía.
“Olha!”, sussurrou ela, apontando.
Clara observou. A flor se moveu de novo, um milímetro, e a música recomeçou, com uma nota ligeiramente diferente. Era como se a caixa reagisse ao toque, à presença, à energia do ambiente.
Nos dias seguintes, a caixa tornou-se o centro do mundo de Dona Cecília. Ela sentia que a música era uma linguagem, uma conversa silenciosa com quem quer que a tivesse deixado ali. Clara, com sua sensibilidade musical, começou a perceber padrões. A melodia mudava sutilmente dependendo do humor da avó, da hora do dia, até mesmo da estação que começava a se anunciar lá fora. Às vezes, soava mais alegre, outras, profunda e dolorosa.
Um dia, durante uma crise de tosse que assustou Dona Cecília, a caixa tocou uma sequência de notas agudas e frenéticas, quase um grito. Clara, assustada, acalmou a avó. E, assim que a respiração dela voltou ao normal, a caixa emitiu um som suave, reconfortante, como um abraço musical.
Elas nunca descobriram como a caixa funcionava, quem a deixara ali, ou de onde vinha a melodia. Mas Dona Cecília sentia que a caixa não era apenas um objeto. Era um portal. Um portal para memórias que a casa guardara, para emoções que o tempo não pudera apagar. E, às vezes, em noites silenciosas, quando o apartamento moderno parecia mais solitário do que nunca, Dona Cecília subia ao sótão. E, na penumbra, envolta no cheiro de história, ela ouvia a caixa de música tocar sozinha. E sentia que não estava mais completamente sozinha. A música, como uma velha amiga, ainda estava ali. E, quem sabe, talvez um dia, ela desvendasse todo o seu segredo. Ou talvez o segredo fosse justamente o de não ter fim, o de tocar para sempre, como um suspiro eterno que ecoa no tempo.
Por: Catarina de Assis Mendonça

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