A descoberta de um corpo com uma mensagem enigmática presa a ele, alimentando a especulação.

A descoberta de um corpo com uma mensagem enigmática presa a ele, alimentando a especulação.

O Murmúrio da Maré

A areia, úmida e fria, grudava nas solas das botas gastas de Sargento Elias. O sol da manhã, ainda pálido, começava a tingir de rosa o céu sobre a Praia das Pedras, um pedaço esquecido do litoral fluminense, onde o avanço da mata atlântica quase beijava as ondas azuis. O cheiro salgado se misturava ao odor adocicado e fúnebre de algo que Elias conhecia bem demais. Não era a primeira vez que a maré trazia consigo seus segredos macabros.

Mas este era diferente. Enrolado em uma rede de pesca suja, com galhos e algas secas se agarrando ao corpo, estava um homem. Ou o que restava dele. A identificação seria difícil, mas a forma como o corpo estava ali, quase como uma oferta esquecida, prenunciava algo mais. Ao lado da cabeça, em uma garrafa de vidro comum, selada com cera desbotada, havia um rolo de papel amarelado.

Ana Clara, a jovem perita do Instituto Médico Legal, recém-chegada da cidade grande, tremeu, não só pelo vento gelado que chicoteava seus cabelos presos em um coque apertado, mas pela cena. Seus dedos, calçados em luvas de látex, tremiam levemente ao pegar a garrafa. O vidro era áspero, marcado pelo tempo e pela ação do mar. Lá dentro, o papel enrolado parecia resistir a ser desvendado.

Elias observava, os olhos cansados fixos no trabalho dela. Sabia que aquele rolo de papel seria o cerne da questão, a faísca que acenderia a especulação em um lugar onde os boatos corriam mais velozes que a maré. “Coisa de pescador que se perdeu no mar”, murmurou o Senhor Seu Antônio, o dono da pequena quitanda da vila, a poucos metros dali, o olhar fixo na garrafa. “Ou quem sabe… um aviso.”

Ana Clara abriu a garrafa com cuidado, o som do vidro raspando ecoando no silêncio da praia. O papel, quando desenrolado, revelou uma caligrafia elegante, quase anacrônica. Não era uma nota de suicídio, nem um pedido de socorro. Eram apenas algumas linhas:

*”O que foi perdido, encontra seu repouso. A verdade navega em águas desconhecidas, mas sempre retorna à sua origem. Busquem a canção que o mar não canta.”*

Um arrepio percorreu a espinha de Elias. Canção que o mar não canta. Aquilo não era para os policiais. Era uma mensagem para alguém. Para alguém que entenderia.

A vila de pescadores, com suas casas coloridas e barcos desgastados, que normalmente fervilhava com o burburinho das redes sendo consertadas e o aroma de peixe fresco, agora se tornara um palco de sussurros. Quem era o homem? De onde viera? E quem, em sã consciência, deixaria uma mensagem tão… poética?

O coveiro da cidade vizinha, um homem taciturno chamado Zé da Cruz, era quem deveria lidar com o corpo. Mas mesmo ele, acostumado com a dor e o fim, parecia perturbado. “Nunca vi nada assim, doutor Elias”, disse ele, a voz rouca. “Parece que ele foi jogado ao mar de propósito, mas a carta… a carta é que me dá arrepio.”

As semanas seguintes se tornaram um tormento de especulações. Ciganos de passagem, traficantes de outra região, um amor bandido, um tesouro escondido. Cada morador da Praia das Pedras tinha sua teoria, alimentada pela enigmatica mensagem. As crianças brincavam de caça ao tesouro, com pedaços de papel escondidos, imitando a garrafa misteriosa. Os pescadores, antes boiando em suas rotinas, agora olhavam o horizonte com um misto de temor e fascínio.

Ana Clara, longe do burburinho da vila, passava horas no laboratório, analisando cada fragmento de DNA, cada marca no corpo. Não havia nada que ligasse o falecido a crime algum conhecido. Era um fantasma que o mar trouxera, com um enigma por trás. Ela voltava à frase: “Busquem a canção que o mar não canta.” Que canção seria essa? Uma lenda local? Um segredo guardado por gerações?

Um dia, enquanto revisava as anotações de Elias, ela se deparou com um detalhe: o falecido usava um pequeno pingente, quase imperceptível, em um cordão grosso, escondido sob a roupa. Era um pequeno peixe esculpido em osso, desgastado pelo tempo e pelo uso.

Enquanto isso, Senhor Seu Antônio, com os olhos marejados de nostalgia, encontrou em um baú antigo de seu pai, um caderno com anotações sobre antigas canções de ninar que os pescadores contavam. Uma delas falava de um navio que afundou há décadas, com uma carga valiosa e uma tripulação que desapareceu misteriosamente. A melodia era suave, triste, e falava de “um canto que o mar escondeu nas profundezas”.

O corpo, sem nome, sem história conhecida, jazia no necrotério. Mas a mensagem, essa sim, ganhava vida. A canção que o mar não cantava começava a ecoar, um murmúrio distante que prometia desvendar um mistério que talvez fosse mais antigo e mais profundo do que qualquer um na Praia das Pedras poderia imaginar. E Ana Clara sabia, com uma certeza fria, que a busca pela verdade, assim como a maré, tinha acabado de começar a subir.


Por: João Pedro Silveira

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