A Dança das Sombras nos Olhos de Aurora
A sala de estar de Dona Efigênia, com seu cheiro persistente de lavanda e naftalina, sempre foi um refúgio para mim, um lugar de silêncios confortáveis e histórias sussurradas. Naquele entardecer, porém, o conforto se esvaiu como a luz do sol que lutava para penetrar as cortinas pesadas. Aurora, minha sobrinha-neta, estava sentada no tapete oriental, as mãos frias apertando o joelho, um vulcão de emoções contido em um corpo frágil.
Seus olhos. Era neles que o tema da noite se manifestava com uma intensidade dolorosa. “O medo em seus olhos”. Não era o sobressalto súbito de um susto, nem a apreensão diante do desconhecido. Era um medo profundo, ancestral, que parecia ter fincado raízes na íris azul-acinzentada, como uma planta parasita que suga a vitalidade.
Aurora tinha apenas sete anos. Seus dias eram povoados por desenhos coloridos, gargalhadas espontâneas e o fascínio por joaninhas. Mas nas últimas semanas, algo a assombrava. Ela se encolhia ao menor ruído inesperado, desviava o olhar de sombras que dançavam nas paredes e murmurava sobre “aquilo” que a observava.
Dona Efigênia, com sua sabedoria ancestral, tentava acalmá-la com chá de camomila e histórias de coragem. Mas o medo em Aurora não era um monstro de papel que se desfaz com uma brisa. Era algo mais insidioso, que se alimentava da sua imaginação fértil e da sua sensibilidade aguçada.
Naquela noite, enquanto a lua tingia o quintal de prata, Aurora puxou meu vestido. “Tia Catarina”, sussurrou, a voz embargada. “Ele está na janela de novo.”
Meu coração apertou. Segui seu olhar. A janela, emoldurada por flores murchas do jardim de Dona Efigênia, estava deserta. Apenas a penumbra acolhia o luar tímido. Mas nos olhos de Aurora, o espaço vazio pulsava. Pulsava com a figura que ela pintava em sua mente, um espectro sem forma definida, mas com a presença opressora do perigo.
Lembrei-me de minhas próprias infâncias, de medos infantis que pareciam gigantes antes de serem desmistificados pela luz da razão. Mas o medo de Aurora era diferente. Era um medo que parecia carregar o peso de gerações, um eco de traumas que ela sequer havia vivido.
Decidi não reprimir sua angústia. Abracei-a forte, sentindo a fragilidade dos seus ossos contra o meu peito. “Aurora”, disse, com a voz o mais calma que pude reunir. “Eu não vejo nada na janela. Mas eu vejo você. E você é forte. Muito mais forte do que qualquer sombra.”
Ela ergueu o rosto. A escuridão em seus olhos parecia ter se intensificado, refletindo a minha própria incerteza. Mas havia também uma faísca de questionamento, uma pequena rachadura na muralha do medo.
Passei a noite a observar Aurora. A cada sobressalto, a cada murmúrio, eu me aproximava, oferecendo minha presença como um farol. Não tentava expulsar o medo, pois sabia que ele tem seus motivos, por mais obscuros que fossem. Tentava, sim, iluminar os cantos escuros dos seus olhos, mostrando que mesmo na maior escuridão, a luz da coragem pode ser encontrada.
Ao amanhecer, o sol, mais ousado, invadiu a sala de estar. Aurora, adormecida em meus braços, parecia mais serena. Mas quando seus olhos se abriram, eu sabia que a dança das sombras não havia terminado. Estava apenas em uma pausa. E eu, como autora dessa pequena vida em desenvolvimento, continuaria a escrever, página por página, verso por verso, a história de uma menina que, mesmo com o medo a dançar em seus olhos, aprendia a caminhar sob a luz. A verdadeira coragem, afinal, não é a ausência de medo, mas a decisão de seguir em frente apesar dele. E nos olhos de Aurora, a cada amanhecer, eu via essa decisão se tornando um pouco mais firme.
Por: Catarina de Assis Mendonça

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