A Dança das Brasas Sussurrantes

A Dança das Brasas Sussurrantes

O ar de São João del Rei, em pleno agosto, carregava o perfume inconfundível da canjica, do quentão e da lenha que queimava. Mas neste ano, como em tantos outros que a memória se esforçava para desvendar, a fogueira da praça central parecia arder com uma ânsia diferente. Era uma torre de fogo que se esticava para o céu estrelado, as chamas dançando com uma vivacidade quase selvagem, murmurando segredos que só o vento parecia compreender.

Eu, Catarina de Assis Mendonça, sempre fui observadora das peculiaridades de minha terra. Cresci ouvindo as histórias que os mais velhos contavam, misturando o sagrado com o profano, o real com o fantástico. E a fogueira de São João, ah, essa sempre foi um capítulo à parte. Diziam que a cada ano ela ardia mais alta, impulsionada não apenas pela lenha seca, mas por algo mais. Algo que, para os curiosos, se manifestava em visões.

Naquela noite, a festa estava em seu ápice. O forró animava a multidão, os casais rodopiavam em volteios desajeitados, e crianças corriam com balões de São João, cujas luzes tremeluziam como estrelas caídas. Mas meus olhos, como de costume, voltavam-se para o centro da praça. A fogueira, imponente, lançava reflexos alaranjados sobre os rostos apreensivos e fascinados de quem se arriscava a chegar perto.

Foi então que vi, ou melhor, *senti*. Um arrepio gelado percorreu minha espinha, alheio ao calor que emanava das chamas. Uma mulher, com um vestido branco esvoaçante e cabelos longos e escuros que pareciam se misturar à fumaça, aproximou-se da fogueira. Ela não parecia sentir o calor. Seus olhos, de um azul profundo e melancólico, fixaram-se nas brasas que explodiam.

De repente, ela começou a dançar. Mas não era a dança alegre e contagiante do forró. Era um movimento lento, ondulante, como se estivesse sendo guiada por uma música antiga e esquecida. Outras figuras começaram a surgir, emergindo da própria fumaça, das sombras que as chamas projetavam nas paredes das casas. Eram vultos etéreos, contornos indefinidos de homens e mulheres que se juntaram àquela dança espectral.

Um grupo de jovens, ousados e céticos, decidiu se aproximar mais. Empurravam-se uns aos outros, gargalhando, a descrença pintada em seus rostos. Quiseram provar que era apenas o calor, a sugestão, o álcool do quentão. Mas quando chegaram a poucos metros do fogo, seus risos cessaram. Seus olhos se arregalaram, e seus corpos, antes cheios de energia juvenil, paralisaram.

Eu pude ouvir, embora não pelas minhas orelhas, mas por um eco profundo em minha alma, os sussurros que emanavam daquela dança. Eram vozes antigas, carregadas de saudades, de promessas quebradas, de amores perdidos. As figuras fantasmagóricas pareciam contar suas histórias através dos movimentos fluidos, dos gestos que pareciam implorar ou lamentar.

Um dos rapazes, de nome Zé do Gado, que sempre fora o mais corajoso, deu um passo para trás, ofegante. “Eu vi… eu vi a minha avó”, gaguejou, pálido como a lua. “Ela estava me chamando.”

A moça ao seu lado, Maria Flor, que sempre fora a mais sonhadora, levou as mãos ao peito. “E eu… eu vi um homem que nunca conheci, mas senti que o amava. Ele estendeu a mão para mim.”

A fogueira continuava a queimar, implacável, alta, misteriosa. As visões não eram assustadoras, de um terror que paralisa. Eram visões de memórias, de ecos de vidas passadas que a força daquele fogo ancestral resgatava para o presente. Eram as almas que, talvez em busca de um último abraço, de um último olhar, se manifestavam na dança das brasas.

A cada ano, a fogueira de São João de São João del Rei era um portal. Um portal para o passado, para o que foi e para o que poderia ter sido. E quem ousasse aproximar-se demais, corria o risco de se perder, mesmo que por um breve instante, naquela dança eterna, guiada pelo fogo que ardia mais alto e mais misterioso a cada ano, sussurrando histórias que o tempo insistia em não apagar. E eu, Catarina, continuava a observar, sabendo que cada chama que subia era um pedaço de história renascendo, um segredo compartilhado entre o céu, a terra e as almas que dançavam em volta da fogueira.


Por: Catarina de Assis Mendonça

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