A Cozinha Esquecida da Dona Aurélia
A mata da região de São Simão, mesmo tão perto da cidade, guardava seus segredos como a pele de uma velha árvore guarda cicatrizes. E foi ali, entre samambaias úmidas e o cheiro pungente de terra remexida, que a ossada apareceu. Inerte, sob uma fina camada de folhas secas, jazia o corpo de um homem que ninguém parecia conhecer. A única peculiaridade, a nota dissonante num quadro de desolação silenciosa, era um livro de receitas. Um volume surrado, de capa de couro desbotado, com um título gravado em letras douradas quase apagadas: “Sabores de Antes e Promessas Guardadas”.
O delegado Simão, um homem de poucas palavras e olhos que já viram muito, o pegou com cautela, luvas de borracha sobre os dedos calejados. O livro exalava um perfume adocicado e terroso, uma mistura de especiarias antigas e o mofo que o tempo e a umidade haviam depositado. As páginas, amareladas e com manchas que pareciam de vinho ou de alguma geleia esquecida, estavam repletas de uma caligrafia elegante, porém tremida.
“Dona Aurélia”, ele murmurou, um nome que pairava no ar como uma lembrança distante.
Aurélia era uma figura lendária em São Simão. Uma senhora que viveu até uma idade avançada, reclusa em sua casa antiga à beira da mata, famosa por seus quitutes divinos e por um temperamento, diziam, tão forte quanto seus temperos. As receitas dela eram sussurradas em rodas de conversa, passadas de boca em boca como segredos de alquimista. Mas ninguém, jamais, a vira escrever nada.
O livro, no entanto, não continha apenas ingredientes e métodos de preparo. Entre receitas de bolos de fubá com goiabada cascudo e ambrosias que fariam chorar de saudade até quem nunca provou, havia anotações à margem. Pedaços de vida. “Para curar a febre do pequeno Pedro, com três pitadas de alecrim colhido ao amanhecer.” Ou, mais sombrio: “O amargor do feijão tropeiro, lembrando a partida do meu José.”
Aos poucos, a polícia começou a ligar os pontos. O homem encontrado na mata, um forasteiro com um passado nebuloso, teria tido algum tipo de ligação com Dona Aurélia? E o que o livro, a joia peculiar achada junto a ele, significava?
Clara, a bibliotecária da cidade, uma jovem curiosa e com um talento para desenterrar histórias, foi chamada para ajudar. Ela examinou o livro com um respeito quase religioso. “As receitas são incríveis”, ela disse a Simão, a voz embargada pela emoção. “Não são só para comer, delegado. São para sentir. Para lembrar.”
Ela encontrou uma receita particular, “Risoto de Cogumelos do Bosque Encantado”. As instruções eram precisas, mas havia um adendo: “Colher apenas sob a lua cheia, quando os sussurros da mata se tornam claros.” Clara conhecia as histórias. Os mais antigos diziam que existiam cogumelos raros no interior da mata, com propriedades quase místicas, que Dona Aurélia, diziam, sabia encontrar.
E com a leitura mais profunda, uma trama se desdobrava. Havia menções a um “doce de cura” que prometia alívio para “doenças que a ciência não alcança”. Seria o forasteiro um paciente? Alguém que buscava a cura lendária de Dona Aurélia? Ou algo mais sinistro? Havia também anotações sobre “proteção contra inveja” e “despertar de paixões adormecidas”. O livro era mais do que um mero compêndio culinário; era um diário de intenções, um almanaque de desejos e medos.
Os moradores de São Simão, ao saberem da descoberta, começaram a revisitar suas memórias sobre Dona Aurélia. A senhora que parecia saber exatamente o que cada um precisava, fosse um consolo na mesa de jantar ou um conselho sussurrado. Alguns falavam que ela tinha um pacto com a mata, que as ervas que ela usava tinham poder. Outros, mais céticos, atribuíam tudo ao seu talento inato.
O forasteiro permaneceu um mistério. Ninguém o reconheceu. Mas o livro, ah, o livro era uma ponte para o passado, para a sabedoria esquecida de uma mulher que, através de seus pratos, parecia ter moldado a própria vida de São Simão.
Clara decidiu testar uma das receitas. A “Sopa de Ervas da Vovó Sofia”, destinada a “acalmar o espírito agitado”. Ela reuniu os ingredientes, alguns fáceis de encontrar, outros exigindo uma pequena incursão pela beira da mata, guiada pelas descrições detalhadas do livro. O cheiro que subiu da panela era reconfortante, uma sinfonia de cheiros familiares e inesperados. Ao provar, Clara sentiu um alívio palpável, uma quietude que há muito não experimentava.
A descoberta do corpo e do livro não trouxe apenas um mistério a ser resolvido. Trouxe de volta as lendas, as histórias sussurradas, a nostalgia de um tempo em que a comida era mais do que sustento, era um ritual, uma conexão com a terra, com os outros e consigo mesmo. E enquanto Simão continuava sua investigação, a pergunta pairava no ar, tão persistente quanto o aroma das especiarias do livro: o forasteiro havia encontrado na mata o que procurava, ou a mata, e as receitas de Dona Aurélia, o haviam encontrado? E o que mais, guardado entre as páginas manchadas de geleia e promessas, ainda estava por ser descoberto?
Por: Ricardo Soares Guedes

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